Olá, galera que acompanha este medíocre blog. Escrevo hoje com muita felicidade porque revisitei minha tradução antiga do texto A Small, Good Thing, de Raymond Carver, e trago aqui o resultado. Garanto que a leitura, rápida e dolorida como uma bala, vai deixá-los mais espertos à fragilidade da vida e à empatia em eventos cotidianos. É uma obra de arte desse renomado escritor, que de tão importante para a literatura americana, fez surgir a International Raymond Carver Society. Aproveitem.
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Hello, followers of this mediocre blog. I write today with happiness on my face because I have revisited my old translation of the text A Small, Good Thing, by Raymond Carver, and I bring here the results. I can affirm that this reading, quick and painful like a bullet, will make you aware to the frailty of life and to empathy in day-to-day events. This is a fine piece by this renowned writer, who was so important to the American Literature that people have created the International Raymond Carver Society. Enjoy!
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UMA COISINHA BOA
No
sábado à tarde ela foi de carro até a padaria do centro. Depois de
vasculhar um fichário com fotografias de bolos coladas com fita,
pediu um de chocolate, o favorito da criança. O bolo que escolheu
era decorado com uma nave espacial e uma plataforma de lançamento
abaixo de estrelinhas brancas espalhadas, com um planeta feito de
glacê vermelho do outro lado. O nome do garoto, SCOTTY, apareceria
em letras verdes acima do planeta. O padeiro, que era um homem velho,
de pescoço grosso, escutou calado quando ela o contou que o filho
faria oito anos na próxima segunda. O padeiro usava um avental
branco que se assemelhava a uma bata. Alças presas
debaixo dos braços davam a volta por trás do seu corpo e voltavam à
frente fixando-se debaixo da cintura gorda. Limpou as mãos no
avental enquanto prestava atenção nela. Manteve os olhos nas
fotografias e a deixou falar. Deixou-a à vontade. Havia acabado de
chegar no trabalho e ficaria lá a noite toda, fazendo pães; não
estava com pressa nenhuma.
Ela
deu seu nome, Ann Weiss, e seu número de telefone. O bolo estaria
pronto na manhã de segunda, recém-saído do forno, bem antes do
aniversário da criança naquela tarde. O padeiro não foi simpático.
Não houve nenhuma cortesia entre eles; somente a troca mínima de
palavras, de informações necessárias. Ele a fez sentir-se
desconfortável e ela não gostou. Enquanto ele se inclinava sobre o
balcão com a caneta na mão, Ann analisou seus traços grosseiros e
se perguntou se ele já fizera qualquer coisa na vida além de ser
padeiro. Ela era mãe e tinha trinta e três anos. Na sua cabeça,
todo mundo, especialmente na idade do padeiro – um homem com idade
suficiente para ser seu pai – deveria ter filhos que passaram por
essa época especial de bolos e festas de aniversário. Isso deve ser
algo em comum entre eles, pensou ela. Mas ele foi brusco – não
rude, apenas brusco. Ela desistiu de tentar ser sua amiga. Olhou para
os fundos da padaria e viu uma comprida e pesada mesa de madeira, com
formas de alumínio empilhadas em um dos cantos; do lado da mesa, um
contentor de metal cheio de gavetas vazias. Havia lá um fogão
enorme. Um rádio tocava música country.
O
padeiro terminou de anotar as informações no cartão de pedido
especial e fechou o fichário. Olhou para ela e disse, “Segunda de
manhã”. Ela agradeceu e dirigiu até sua casa.
Na
segunda de manhã, o aniversariante andava para a escola com outro
garoto. Passavam um pacote de batatinha frita para lá e para cá e o
aniversariante tentava descobrir o que seu amigo pretendia lhe dar de
presente de aniversário naquela tarde. Sem prestar atenção, o
aniversariante deu um passo fora da calçada e foi atropelado por um
carro. Caiu sobre um lado do corpo com a cabeça na valeta e as
pernas no meio da rua. Seus olhos estavam fechados, mas suas pernas
se moviam para frente e para trás como se estivesse tentando escalar
alguma coisa. Seu amigo deixou as batatinhas caírem e começou a
chorar. O carro já estava a uns trinta metros quando parou no centro
da rua. O homem no banco do motorista olhou para trás por cima dos
ombros. Esperou até que o garoto levantasse, instável. O menino
bamboleou um pouco. Parecia tonto, mas bem. O motorista passou a
marcha e foi embora.
O
aniversariante não chorou, mas também não tinha nada a dizer sobre
nada. Ele não respondeu quando seu amigo indagou sobre a sensação
de ser atropelado. Caminhou até sua casa e seu amigo foi para a
escola. Mas depois que o aniversariante estava dentro de casa,
contando à sua mãe o que aconteceu – ela sentada no sofá,
segurando a mão dele no colo, dizendo, “Scotty, querido, tem
certeza de que está bem, bebê?” pensando em ligar para o médico
mesmo assim – ele deitou no sofá, fechou os olhos e amoleceu.
Quando não conseguiu acordá-lo, Ann correu para o telefone e ligou
para o marido no trabalho. Howard pediu pra que ela ficasse calma,
ficasse calma, então chamou uma ambulância para o menino e partiu
para o hospital.
É
óbvio que a festa de aniversário foi cancelada. O menino estava no
hospital com uma concussão leve e em estado de choque. Havia
vomitado e seus pulmões absorveram fluidos que precisavam ser
bombeados para fora ainda naquela tarde. Agora ele pareia estar
simplesmente em um sono muito profundo – mas não um coma, Dr.
Francis enfatizou, não coma, quando ele viu a preocupação nos
olhos dos pais. Às onze em ponto daquela noite, quando o garoto
aparentava dormir bem confortável depois dos muitos raios-x e do
trabalho laboratorial, e tudo era só uma questão de o garoto
acordar e caminhar por aí, Howard deixou o hospital. Ann e ele
estavam no hospital com a criança desde aquela tarde e ele ia rápido
em casa tomar banho e trocar de roupa. “Estarei de volta em uma
hora,” disse. Ela concordou com a cabeça. “Está tudo bem”,
respondeu. “Vai ficar tudo bem por aqui”. Ele a beijou na testa e
deram-se as mãos. Ann sentou na cadeira ao lado da cama e olhou para
a criança. Esperava que ele acordasse e ficasse bem. Só então
poderia começar a relaxar.
Howard
dirigiu do hospital a sua casa. Ia muito rápido pelas ruas molhadas
e escuras, então deu por si e diminuiu a velocidade. Até agora,
tinha vivido tranquilamente e bastante satisfeito – faculdade,
casamento, mais um ano de certificação avançada em negócios, uma
pequena parceria com uma firma de investimentos. Ser pai. Estava
feliz e, até agora, com sorte – e sabia disso. Seus pais ainda
eram vivos, seus irmãos e sua irmã estabelecidos, seus amigos da
faculdade saíram à procura de seus lugares no mundo. Até agora,
tinha se mantido longe de qualquer grande dano, daquelas forças que
ele sabia existir e que poderiam aleijar ou derrubar um homem se a
sorte estivesse ruim, se as coisas subitamente mudassem. Dobrou na
entrada da garagem e estacionou. Sua perna esquerda começou a
tremer. Permaneceu sentado dentro do carro por um minuto e tentou
lidar com a situação atual de uma maneira racional. Scotty tinha
sido atropelado e estava no hospital, mas ia ficar tudo bem com ele.
Howard fechou os olhos e passou a mão pelo rosto. Saiu do carro e
foi até a porta da frente. O cachorro latia dentro da casa. O
telefone tocava e tocava enquanto ele destrancava a porta e tateava a
parede procurando o interruptor. Não deveria ter deixado o hospital,
não deveria. “Mas que coisa!”, exclamou. Agarrou o aparelho e
disse, “Eu acabei de entrar!”
“Tem
um bolo aqui que ninguém veio buscar”, a voz do outro lado da
linha alertava.
“O
quê?”, Howard perguntou.
“Um
bolo”, a voz repetiu. “Um bolo de dezesseis dólares”.
Howard
segurava o aparelho contra a orelha tentando entender a situação.
“Não sei nada desse bolo”, reclamou. “Pelo amor de Deus, do
que você está falando?”
“Não
me venha com essa”, retrucou a voz.
Howard
desligou o telefone. Foi até a cozinha e se serviu de um pouco de
uísque. Ligou para o hospital. Mas a condição do garoto continuava
a mesma; estava dormindo e nada mudara ali. Enquanto a água enchia a
banheira, Howard ensaboou seu rosto e se barbeou. Acabava de esticar
na banheira e fechar os olhos quando o telefone tocou de novo.
Arrastou-se para fora, pegou uma toalha e correu pela casa dizendo
“Burro, burro”, por ter deixado o hospital. Mas quando atendeu o
telefone e gritou “Alô!”, não houve som nenhum do outro lado da
linha. Então, desligaram.
Chegou
no hospital pouco depois da meia-noite. Ann ainda estava sentada na
cadeira ao lado da cama. Olhou para Howard e depois para a criança.
Os olhos da criança permaneciam fechados e a cabeça envolta em
gaze. Sua respiração estava silenciosa e regular. Prendia-se a um
equipamento acima da cama um recipiente de glicose com um tubo que
saía para o braço do garoto.
“Como
ele está?” Howard perguntou. “O que é tudo isso?”
movimentando a mão na direção da glicose e do tubo.
“Ordens
do Dr. Francis,” respondeu ela. “Ele precisa se nutrir. Precisa
manter a força. Por que ele não acorda, Howard? Eu não entendo, se
ele está bem.”
Howard
pousou uma mão sobre a nuca dela. Passou seus dedos pelos seus
cabelos. “Ele vai ficar bem. Vai acordar em pouco tempo. Dr.
Francis sabe das coisas”.
Depois
de um tempo, ele disse, “Talvez você devesse ir para casa e
descansar um pouco. Eu vou ficar aqui. Só não ature aquela criatura
que fica ligando. Desligue logo”.
“Quem
que fica ligando?” ela perguntou.
“Eu
não sei quem é, mas não tem nada melhor para fazer do que ligar
para as pessoas. Agora vá.”
Ela
balançou a cabeça. “Não”, ela disse, “estou bem.”
“Sério”,
ele insistiu. “Vá para casa por enquanto, depois volte e fique no
meu lugar pela manhã. Vai ficar tudo bem. O que foi que o Dr.
Francis disse? Scotty vai ficar bem. Não precisamos nos preocupar.
Ele está apenas dormindo, só isso.”
Uma
enfermeira abriu a porta. Cumprimentou-os com a cabeça enquanto ia
em direção à cama. Tirou o braço esquerdo do menino debaixo da
coberta e encostou os dedos no seu punho, encontrou o pulso e então
consultou o relógio. Em pouco tempo, pôs o braço debaixo da
coberta e foi para o pé da cama, onde escreveu alguma coisa em uma
prancheta anexada ali.
“Como
ele está?”, perguntou Ann. A mão de Howard era um peso nos seus
ombros. Começara a sentir a pressão dos dedos dele.
“Estável”,
a enfermeira disse. Então continuou, “O médico estará de volta
em alguns instantes. Já chegou no hospital. Está fazendo as rondas
no momento.”
“Eu
estava dizendo aqui que talvez ela quisesse ir pra casa e descansar
um pouco”, sugeriu Howard. “Depois que o doutor vier”, ele
disse.
“Ele
poderia fazer isso, sim”, a enfermeira concordou. “Acho que vocês
dois deveriam se sentir à vontade para fazer isso, se quisessem.”
A enfermeira era uma loirona da Escandinávia. Havia resquícios de
sotaque na sua fala.
“Vamos
ver o que o médico diz”, Ann disse. “Eu quero falar com o
médico. Não acho que ele deveria estar dormindo assim. Não acho
que isso é um bom sinal.” Levou as mãos aos olhos e deixou a
cabeça se mover um pouco para a frente. Howard apertou mais forte o
ombro dela, sua mão deslizou para o pescoço e seus dedos começaram
a pressionar os músculos ali.
“Dr.
Francis estará aqui em alguns minutos”, a enfermeira retrucou.
Depois, deixou a sala.
Howard
fitou seu filho por um tempo, o pequeno peito se elevando e abaixando
quietamente por baixo das cobertas. Pela primeira vez desde os
minutos terríveis após o telefonema de Ann ao seu escritório,
sentiu um medo genuíno originar-se nos seus braços e pernas.
Começou a agitar a cabeça. Scotty estava bem, mas ao invés de
dormir em casa, na sua própria cama, estava na cama de um hospital
com ataduras na cabeça e um tubo no braço. Mas era dessa ajuda que
ele precisava no momento.
Dr.
Francis entrou e apertou as mãos de Howard, apesar de terem se
conhecido há algumas horas apenas. Ann se levantou da cadeira.
“Doutor?”
“Ann”,
ele respondeu e a cumprimentou com a cabeça. “Primeiro, vamos ver
como ele está”, disse
o
doutor. Foi para o lado da cama e tirou o pulso do menino. Levantou
uma pálpebra e depois a outra. Howard e Ann ao lado do doutor,
assistiam. Então, o médico afastou as cobertas e auscultou o
coração e o pulmão do garoto com seu estetoscópio. Pressionou os
dedos aqui e ali no abdômen. Quando terminou, foi ao pé da cama e
analisou o histórico. Viu as horas, anotou alguma coisa no histórico
e então olhou para Howard e Ann.
“Doutor,
como ele está?” Howard indagou. “Qual o problema dele
exatamente?”
“Por
que ele não acorda?” insistiu Ann.
O
doutor era um rapaz bonito de ombros largos, com o rosto queimado de
sol. Vestia um terno de três peças azul, uma gravata listrada e
abotoaduras de marfim. Seu cabelo grisalho estava penteado de um lado
a outro e ele parecia ter vindo de um concerto. “Ele está bem”,
o médico afirmou. “Nada para se espernear. Poderia estar melhor,
eu acho, mas está tudo bem com ele. Ainda assim, queria que ele já
tivesse acordado. Ele deve acordar logo, logo.” O médico olhou
para o garoto de novo. “Vamos saber um pouco mais em algumas horas,
depois que os resultados de outros testes saírem. Mas ele está bem,
acreditem, exceto pela fratura do tamanho de um fio de cabelo que tem
no crânio. Sim, ela existe.”
“Ah,
não”, Ann disse.
“E
uma pequena concussão, como disse antes. E, claro, vocês sabem, ele
está em choque”, o médico os fazia lembrar. “Às vezes acontece
em casos de choque. Esse sono.”
“Mas
ele está fora de perigo?” Howard perguntou. “Você disse antes
que ele não está em coma. Não é um coma, né, doutor?” Howard
esperou. Olhou fixo para o médico.
“Não,
eu não quero chamar isso de coma”, olhou de relance para o garoto
mais uma vez. “Ele está apenas em um sono muito profundo. É uma
medida restaurativa que o corpo está tomando por si próprio. Ele
está fora de qualquer perigo real, com certeza. Sim. Mas vamos saber
mais quando ele acordar e os testes saírem”, certificou o médico.
“É
um coma”, Ann exclamou. “Um tipo.”
“Não
é um coma ainda, não exatamente”, o médico disse. “Eu não
chamaria isso de coma. Enfim, não ainda. Ele sofreu um choque. Em
casos de choque esse tipo de reação é bastante comum; é uma
reação temporária a um trauma corporal. Coma. Bem, coma é um
estado de inconsciência profundo e prolongado, alguma coisa que
poderia se estender por dias, ou até semanas. Scotty não está
nesse nível, não até onde podemos distinguir. Estou certo de que
suas condições vão mostrar melhora pela manhã. Estou apostando
que vai. Vamos saber mais quando ele acordar, o que agora não deve
demorar. Mas, claro, vocês podem fazer como quiserem e ficar aqui ou
ir para casa por um tempinho. Sintam-se à vontade para sair do
hospital por enquanto, se quiserem. Não é fácil, eu sei.” O
médico fitou o garoto novamente, observando, então virou-se para
Ann e disse, “Tente não se preocupar, mãezinha. Acredite em mim,
estamos fazendo tudo que pode ser feito. Agora é só questão de um
pouquinho mais de tempo.” Cumprimentou-a com a cabeça, apertou a
mão de Howard de novo e deixou a sala.
Ann
pôs a mão sobre a cabeça do filho. “Pelo menos ele não está
com febre”, disse aliviada. Então se sobressaltou,
“Mas,
meu Deus, ele está muito frio. Howard? Era para ele estar gelado
assim? Sinta aqui a testa dele.”
Howard
tocou nas têmporas do filho. Sua própria respiração tinha ficado
mais devagar. “Eu acho que era mesmo pra ele estar assim no
momento”, ele disse. “Ele está em choque, lembra? É o que o
doutor disse. O doutor estava aqui agorinha. Teria dito alguma coisa
se o Scotty não estivesse bem.”
Ann
permaneceu ali por mais um tempo, mordendo os lábios. Então, passou
para a sua cadeira e sentou.
Howard
sentou na cadeira próxima à dela. Eles se olharam. Ele queria dizer
alguma coisa para acalmá-la, mas também tinha medo. Pegou a mão
dela, colocou no seu colo, e isso o fez sentir melhor, a mão dela
estar ali. Tomou sua mão e apertou. Depois, só segurou. Sentaram-se
assim por um tempo, assistindo ao garoto sem falar nada. Vez ou outra
ele apertava sua mão. No fim, ela tirou a mão.
“Estive
rezando”, disse Ann.
Howard
concordou com a cabeça.
Ela
continuou, “Quase pensei que tinha esquecido como se faz, mas enfim
lembrei. Tudo o que eu tive que fazer foi fechar os olhos e dizer,
‘Por favor, meu Deus, nos ajude – ajude o Scotty’ e o resto foi
fácil. As palavras estavam logo ali. Quem sabe se você rezasse
também...”, sugeriu.
“Já
rezei”, ele disse. “Rezei esta tarde – na tarde de ontem, quer
dizer – depois que você ligou, enquanto eu dirigia para o
hospital. Tenho rezado”, ele disse.
“Isso
é bom”, aprovou ela. Pela primeira vez, sentiu que os dois estavam
juntos nisso, nessa confusão. Deu-se conta, perplexa, de que até
agora tudo estava acontecendo para ela e Scotty. Ela não tinha
deixado Howard entrar nessa, embora o marido estivesse ali e
precisasse disso desde o início. Sentiu-se feliz por ser sua esposa.
A
enfermeira entrou, tirou o pulso do garoto novamente e checou o fluxo
do recipiente pendurado sobre a cama.
Uma
hora depois, outro médico entrou. Disse que seu nome era Parsons, da
radiologia. Tinha um bigode peludo. Usava mocassins,
uma camisa de caubói e uma calça jeans.
“Vamos
levá-lo lá para baixo para tirar algumas chapas”, avisou.
“Precisamos de mais algumas chapas e queremos uma tomografia.”
“O
quê?” Ann perguntou. “Uma tomografia?” Posicionou-se entre o
novo médico e a cama. “Achei que vocês já haviam tirado todos os
seus raios-x.”
“Sinto
informar que precisamos de mais alguns”, ele disse. “Nada com que
se preocupar. Só precisamos de mais algumas chapas e queremos fazer
uma tomografia do cérebro dele.”
“Meu
Deus”, exclamou Ann.
“Isso
é um procedimento perfeitamente normal em casos como este”, o novo
médico disse. “Só precisamos descobrir de certeza por que ele não
acordou ainda. É um procedimento normal e nada para causar alarme.
Vamos levá-lo lá para baixo em alguns minutos”, avisou o médico.
Pouco
depois, dois enfermeiros entraram na sala com uma maca. Eram rapazes
negros em uniformes brancos, trocaram algumas palavras em uma língua
estrangeira enquanto desengatavam o garoto do tubo e o passavam da
cama para a maca. Empurraram-no sala afora. Howard e Ann entraram no
mesmo elevador. Ann fitava seu filho. Fechou os olhos enquanto o
elevador começava sua descida. Os enfermeiros, um em cada ponta da
maca, não falavam, embora certa vez um dos homens tenha feito um
comentário na língua deles, e o outro tenha concordado com a cabeça
vagarosamente em resposta.
Mais
tarde naquela mesma manhã, assim que o sol começava a iluminar as
janelas na sala de espera fora do departamento de raio-x, trouxeram o
garoto para fora e o levaram para seu quarto. Howard e Ann subiram no
elevador com ele mais uma vez, e mais uma vez eles tomaram seu lugar
ao lado da cama. Esperaram o dia inteiro, mesmo assim o garoto não
acordou. De vez em quando, um deles saía da sala para tomar café na
cafeteria do andar de baixo e, então, como se lembrando subitamente
e sentindo-se culpado, levantava da mesa e corria de volta para a
sala. Dr. Francis veio de novo naquela tarde, examinou o garoto mais
uma vez e então saiu depois de dizer que o menino iria dar algum
sinal e poderia acordar a qualquer momento. Enfermeiras, diferentes
daquelas enfermeiras da noite anterior, entravam de tempos em tempos.
Uma mulher jovem do laboratório bateu na porta e entrou na sala.
Vestia uma calça social e blusa brancas e carregava uma bandejinha
com objetos que colocou na estante ao lado da cama. Sem dizer uma
palavra, tirou sangue do braço do garoto. Howard fechou os olhos
quando a mulher achou o lugar certo no braço do garoto e enfiou a
agulha.
“Eu
não entendo”, Ann disse para a mulher.
“Ordens
do doutor”, redarguiu a moça. “Só faço o que me mandam. Eles
dizem tirem o sangue desse aqui, eu tiro. O que há de errado com
ele, afinal?”, perguntou. “Ele é um doce.”
“Ele
foi atropelado”, Howard respondeu. “O motorista fugiu.”
A
jovem balançou a cabeça e olhou novamente para o garoto. Então
recolheu sua bandeja e deixou a sala.
“Por
que ele não acorda?”, questionou Ann. “Howard? Quero algumas
respostas desse pessoal.”
Howard
não disse nada. Sentou-se de novo na cadeira e cruzou as pernas.
Passou a mão no rosto. Olhou para seu filho e se ajeitou na cadeira,
fechou os olhos e foi dormir.
Ann
andou até a janela e olhou para o estacionamento lá fora. Era
noite, e carros entravam e saíam do estacionamento com as luzes
acesas. Parou na janela com suas mãos agarradas ao peitoril e sentiu
lá no fundo que eles agora estavam passando por algo, algo difícil.
Estava com medo, seus dentes começaram a tilintar até que ela
apertou o maxilar. Viu um carro grande parar na frente do hospital e
uma pessoa, uma mulher com um casaco longo, entrar no carro. Desejou
ser aquela mulher e que alguém, qualquer pessoa, estivesse levando-a
para algum outro lugar, onde ela encontraria Scotty esperando por ela
quando saísse do carro, pronto para dizer Mãe e se deixar prender
pelos braços dela. Pouco tempo depois, Howard acordou. Olhou para o
garoto de novo. Então, levantou-se da cadeira, alongou-se, e foi
para o lado da mulher na janela. Ambos vislumbraram o estacionamento.
Não disseram nada. Mas agora pareciam sentir o interior do outro,
como se a preocupação os tivesse feito transparentes de uma maneira
perfeitamente natural.
A
porta abriu e o Dr. Francis entrou. Ele vestia paletó gravata
diferentes dessa vez. Seu cabelo grisalho estava penteado de um lado
a outro e ele parecia ter se barbeado há pouco. Foi direto para a
cama e examinou o garoto. “Ele já deveria ter se recuperado. Não
há motivos para isso”, ele disse. “Mas eu posso dizer para vocês
que estamos todos convencidos que ele está fora de qualquer perigo.
Só vamos nos sentir melhores quando ele acordar. Não há razão,
absolutamente nenhuma, para que ele não se recupere. Logo, logo. Ah,
ele vai ter uma boa de uma dor de cabeça quando acordar, podem
contar com isso. Mas todos os seus sinais estão bem. Estão normais
como deveriam.”
“Então
é um coma?”, Ann perguntou.
O
médico esfregou sua bochecha barbeada. “Vamos chamar assim por
enquanto, até que ele acorde. Mas vocês devem estar esgotados. Isso
é difícil. Eu sei que é difícil. Sintam-se à vontade para sair e
comer alguma coisinha”, ele sugeriu. “Faria bem para vocês.
Coloco uma enfermeira aqui enquanto vocês estiverem fora se forem se
sentir melhor assim. Vão e comam alguma coisa.”
“Eu
não conseguiria comer”, Ann retrucou.
“Faça
o que for preciso, claro”, concordou o médico. “Enfim, eu
gostaria de dizer que todos os sinais estão bons, os testes deram
negativo, nada apareceu até agora, tão logo ele acorde vai sair
dessa.”
“Obrigado,
doutor”, disse Howard. Apertou a mão do médico novamente. O
médico deu um tapinha nas costas de Howard e saiu.
“Acho
que um de nós deveria ir para casa e ver como as coisas estão por
lá”, propôs Howard. “Até porque Slug precisa ser alimentado.”
“Ligue
para um dos vizinhos”, sugeriu Ann. “Ligue para os Morgans.
Qualquer um daria comida para um cachorro se a gente pedisse.”
“Certo”,
disse Howard. Depois de um tempo, adicionou, “querida, por que você
não faz isso? Por que você não vai para casa e dá uma olhada nas
coisas, depois volta para cá? Vai te fazer bem. Estarei aqui com
ele. Sério”, ele disse. “Precisamos continuar fortes nessa.
Queremos estar aqui depois que ele acordar.
“Por
que você não vai?”, perguntou ela. “Dê comida para o Slug.
Coma, você também.”
“Eu
já fui”, respondeu ele. “Estive fora por exatamente uma hora e
quinze minutos. Você vai para casa por uma hora, pega um ar e
volta.”
Ann
tentou pensar sobre aquilo, mas estava muito cansada. Fechou os olhos
e, novamente, tentou pensar sobre aquilo. Depois de um tempo, disse,
“Talvez eu vá para casa por alguns minutos. Talvez se eu não
estiver sentada aqui olhando para ele a cada segundo, ele vai acordar
e ficar bem. Você sabe. Talvez ele acorde se eu não estiver aqui.
Vou para casa tomar um banho e colocar roupas novas. Vou dar comida
para o Slug. Depois eu volto.”
“Estarei
aqui”, ele disse. “Vá para casa, querida. Vou ficar de olho nas
coisas aqui.” Seus olhos estavam vermelhos e cerrados, como se ele
estivesse bebendo há um bom tempo. Suas roupas estavam amarrotadas.
Sua barba tinha crescido de novo. Ela tocou o rosto dele e então
retirou a mão. Entendeu que ele queria ficar sozinho por um tempo,
sem precisar falar ou compartilhar sua preocupação. Pegou sua bolsa
do criado-mudo e ele a ajudou com o casaco.
“Não
vou demorar”, avisou ela.
“Fique
em casa e descanse um tempinho quando chegar”, recomendou ele.
“Coma alguma coisa. Tome um banho. Depois que sair do banheiro,
sente um pouquinho e descanse. Vai te fazer muito bem, você vai ver.
Aí você volta” disse ele. “Vamos tentar não nos preocupar.
Você ouviu o que o Dr. Francis falou.”
Ela
parou dentro de seu casaco por um minuto tentando relembrar as
palavras exatas do médico, procurando por qualquer nuance, qualquer
sinal de alguma coisa por trás daquelas palavras fora o que ele
tinha dito. Tentou lembrar se a expressão dele tinha mudado quando
se curvou para examinar o garoto. Lembrou-se do jeito com que seus
traços se compuseram enquanto ele levantava as pálpebras do garoto
e auscultava sua respiração.
Foi
até a porta, se virou e olhou para trás. Olhou para o filho e então
para o pai. Howard assentiu com a cabeça. Ela saiu do quarto e
fechou com calma a porta atrás de si. Passou pelo guichê das
enfermeiras e andou pelo corredor fitando o elevador. No fim do
caminho, virou à direita e entrou em uma pequena sala de espera onde
uma família de negros estava sentada em cadeiras de vime. Havia um
homem de meia-idade com camisa e calça cáqui, um chapéu de
baseball virado para trás na cabeça. Uma mulher corpulenta usando
chinelos e um vestido de ficar em casa havia desabado em uma das
cadeiras. Uma adolescente que usava calça jeans, cabelo feito em
dúzias de trancinhas, estava estirada em uma das cadeiras fumando um
cigarro, suas pernas cruzadas na altura do tornozelo. A família
olhou na direção de Ann quando ela entrou na sala. A mesinha estava
cheia de pacotes de hambúrguer e copos de isopor.
“Franklin”,
a mulher corpulenta disse enquanto aumentava seu interesse. “Tem a
ver com o Franklin?” Seus olhos se abriam. “Me diz, moça”,
exclamou a mulher. “Tem a ver com o Franklin?” Ela tentava
levantar da cadeira, mas o homem havia apertado sua mão em torno do
braço dela. “Calma, calma”, ele dizia. “Evelyn.”
“Sinto
muito”, lamentou Ann. “Estou procurando o elevador. Meu filho
está no hospital e não consigo encontrar o elevador.
"O
elevador é logo ali, dobrando à esquerda", disse o homem,
enquanto apontava o dedo.
A
menina tragou seu cigarro e olhou fixamente para Ann. Seus olhos
ficaram estreitos como uma fenda e seus lábios largos afastaram-se
vagarosamente enquanto ela deixava a fumaça escapar. A mulher negra
deixou sua cabeça cair sobre o ombro e desviou o olhar de Ann, já
desinteressada.
"Meu
filho foi atropelado por um carro," Ann contou ao homem. Ela
parecia precisar explicar-se. "Ele está com uma concussão e
uma pequena fratura no crânio, mas vai ficar bem. Está em choque
agora, mas pode ser algum tipo de coma também. Isso é o que nos
preocupa, na verdade, a parte do coma. Estou saindo por um tempinho,
mas meu marido está com ele. Talvez ele acorde enquanto eu estiver
fora.
"Isso
é ruim", o homem disse e trocou de posição na cadeira.
Balançou a cabeça para os lados. Olhou para a mesa e então olhou
para trás, para Ann. Ela ainda estava lá, em pé. Ele disse, "Nosso
Franklin... ele tá
na sala de operação. Alguém cortou ele. Tentou matar ele. Teve uma
luta lá onde ele tava.
Numa festa. Disseram que ele tava
só olhando. Sem incomodar ninguém. Mas hoje em dia isso não quer
dizer nada. Agora tá
na sala de operação. A gente fica só esperando e rezando, é tudo
que podemos fazer agora." Fitou-a firmemente.
Ann
olhou outra vez para a menina, que ainda estava a observando, e para
a mulher mais velha, que mantinha a cabeça abaixada, mas cujos olhos
estavam agora fechados. Ann viu aqueles lábios moverem-se
silenciosamente, criando palavras. Teve grande vontade de perguntar
quais palavras eram aquelas. Quis falar mais com aquelas pessoas, que
estavam no mesmo tipo de espera que ela. Estava receosa, e eles
estavam receosos também. Tinham aquilo em comum. Ela gostaria de ter
comentado sobre o acidente, falado mais sobre Scotty para eles, que
tinha acontecido no dia de seu aniversário, segunda-feira, e que ele
ainda estava inconsciente. No entanto, não soube como começar.
Parou e ficou olhando para eles sem dizer mais nada.
Desceu
o corredor que o homem havia lhe indicado e encontrou o elevador.
Esperou um minuto na frente das portas fechadas, tentando descobrir
se estava fazendo a coisa certa. Levantou o dedo e apertou o botão.
Entrou
na garagem e desligou o motor. Fechou os olhos e inclinou a cabeça
sobre o volante por um minuto. Escutou os sons de tique-taque que o
motor fazia enquanto começava a esfriar. Saiu do carro. Podia ouvir
o cão latindo de dentro da casa. Foi até a porta da frente, que
estava destrancada. Entrou, ligou as luzes e colocou uma chaleira com
água para esquentar. Abriu uma comida de cachorro e deu de comer
para Slug na varanda de trás. O cão comeu em famintas e pequenas
abocanhadas. Ficou correndo pela cozinha para ver se Ann ficaria em
casa.
Quando
se sentou no sofá com seu chá, o telefone tocou.
"Sim!",
disse quando atendeu. “Alô!”
"Sra.
Weiss", uma voz de homem dizia. Era cinco horas da manhã em
ponto e ela pensou ouvir sons de maquinaria ou algum tipo de
equipamento ao fundo.
"Sim,
sim! O que foi?", indagou. "É a Sra. Weiss. A própria.
Diga o que foi, por favor.” Prestou atenção no que quer que fosse
aquele som ao fundo. "É sobre Scotty? Pelo amor de Deus!"
“Scotty”,
disse uma voz de homem. “É sobre o Scotty, sim. Tem a ver com o
Scotty, esse problema. Você se esqueceu do Scotty?”, o homem
perguntou. Então, desligou.
Ann
discou o número do hospital e perguntou pelo terceiro andar. Exigiu
da enfermeira que atendeu o telefone informações sobre seu filho. A
seguir, pediu para falar com o marido. Era, ela disse, uma
emergência.
Esperou,
enrolando o fio do telefone nos dedos. Fechou os olhos e sentiu uma
dor no estômago. Precisava se forçar a comer. Slug veio da varanda
dos fundos e deitou-se próximo aos seus pés. Balançou a cauda. A
dona acariciava a orelha do cãozinho enquanto ele lambia seus dedos.
Howard estava na linha.
“Alguém
acabou de ligar para cá”, ela alertou. Enroscou o fio do telefone
na mão. “Disse que era sobre o Scotty.” E chorou.
“Scotty
está bem”, atalhou Howard. “Quer dizer, ele ainda está
dormindo. Nada de diferente. A enfermeira esteve aqui duas vezes
desde que você saiu. Uma enfermeira, ou doutora. Está tudo bem com
ele.”
“Um
homem ligou. Disse que era sobre o Scotty”, ela contou.
“Querida,
descanse um tempinho, você precisa desse descanso. Deve ser o mesmo
cara que eu atendi. Esqueça. Volte para cá depois que descansar. Aí
nós tomamos café, ou algo assim.”
“Café”,
ela soltou. “Eu não quero café nenhum.”
“Você
sabe do que estou falando”, ele retrucou. “Suco, qualquer coisa.
Sei lá. Não sei de nada, Ann. Jesus! Eu também não estou com
fome. Ann, está difícil falar agora. Estou aqui no balcão. O Dr.
Francis vem de novo às oito da manhã em ponto. Ele vai ter algo
para nos dizer, algo mais certo. Foi isso que uma das enfermeiras
disse. Ela não sabia nada mais que isso. Ann? Querida, talvez
saberemos de mais alguma coisa. Às oito em ponto. Volte antes das
oito. Enquanto isso, estarei aqui, e o Scotty está bem. Continua do
mesmo jeito”, adicionou ele.
“Eu
estava tomando chá,” ela disse, “quando o telefone tocou. Eles
disseram que era sobre o Scotty. Tinha um barulho ao fundo. Tinha um
barulho ao fundo quando você atendeu, Howard?”
“Não
lembro”, respondeu ele. “Talvez o motorista do carro, talvez ele
seja um psicopata e de alguma forma descobriu sobre o Scotty. Mas eu
estou aqui com ele. Apenas descanse como você estava prestes a
fazer. Tome um banho e volte lá para as sete, que vamos falar juntos
com o doutor quando ele chegar aqui. Vai ficar tudo bem, querida. Eu
estou aqui e tem doutores e enfermeiras por todo lado. Disseram que a
condição dele é estável.”
“Estou
morta de medo”, ela disse.
Ann
ligou a torneira, tirou a roupa e entrou na banheira. Lavou-se e
secou-se rapidamente, sem tirar um tempo para lavar seu cabelo. Pôs
roupas de baixo limpas, calças de lã e um suéter. Entrou na sala
de estar, onde o cachorro olhou para ela e deixou sua cauda bater uma
vez contra o chão. Estava começando a ficar claro lá fora quando
ela foi para o carro.
Entrou
com o carro no estacionamento do hospital e encontrou um espaço
perto da porta dianteira. Sentiu que de alguma maneira obscura era
responsável pelo que tinha acontecido à criança. Deixou seus
pensamentos moverem-se para a família do Negro. Lembrou-se do nome
Franklin e da mesa coberta com os papéis de hambúrguer e da
adolescente que olhava fixamente para ela enquanto tragava seu
cigarro. "Não tenha filhos", ela pedia à imagem da menina
enquanto entrava pela porta da frente do hospital. "Pelo amor de
Deus, não."
Pegou
o elevador até o terceiro piso com duas enfermeiras que tinham
acabado de começar seu plantão. Era quarta-feira de manhã, alguns
minutos antes das sete. Havia uma assistente para o Dr. Madison
quando as portas do elevador se abriram no terceiro piso. Saiu detrás
das enfermeiras, que giraram no outro sentido e continuaram a
conversa que ela tinha interrompido quando entrou no elevador. Andou
pelo corredor em direção à salinha onde a família do Negro estava
esperando. Agora já tinham ido, mas as cadeiras estavam dispersas de
tal maneira que parecia que as pessoas tinham saltado de cima delas
um minuto antes. A mesa estava bagunçada com os mesmos copos e
papéis, o cinzeiro estava cheio de pontas de cigarro.
Ela
parou na seção de enfermaria. Uma enfermeira estava em pé atrás
do balcão, escovando seu cabelo e bocejando.
"Tinha
um menino negro em cirurgia na noite passada", Ann disse.
"Franklin era seu nome. Sua família estava no quarto de espera.
Eu gostaria de saber sobre sua condição."
A
enfermeira que estava sentada em uma mesa atrás do balcão tirou os
olhos de uma tabela na frente dela e olhou para cima. O telefone
zumbiu e ela pegou o receptor, mas manteve os olhos em Ann.
"Ele
faleceu", disse a enfermeira no balcão. A enfermeira continuou
segurando o telefone. "Você é amiga da família ou o quê?"
"Conheci
a família na noite passada", Ann disse. "Meu filho está
no hospital. Acho que está em choque. Não sabemos ao certo o que há
de errado. Eu queria saber sobre o Franklin, e só. Obrigado."
Ela caminhou pelo corredor. As portas do elevador, da mesma cor que
as paredes, deslizaram e um homem careca e cadavérico, de calças
brancas e sapatos de lona brancos retirou um carrinho pesado do
elevador. Ela não tinha notado estas portas na noite passada. O
homem levou o carrinho pelo corredor, parou na frente do quarto mais
próximo do elevador e consultou uma prancheta. Depois, abaixou-se e
sacou do carrinho uma bandeja. Bateu levemente na porta e entrou no
quarto. Ela conseguia sentir os odores desagradáveis de comida morna
enquanto o carrinho passava. Passou depressa sem olhar para nenhuma
das enfermeiras e abriu a porta do quarto do filho.
Howard
estava de pé na janela com as mãos para trás. Virou-se quando ela
entrou. "Como ele está?" perguntou ela. Dirigiu-se para a
cama. Deixou cair sua bolsa no chão ao lado do criado-mudo.
Pareceu-lhe que tinha saído por muito tempo. Tocou no rosto do
filho. "Howard?"
"Dr.
Francis esteve aqui há pouco", Howard disse. Olhou para ele com
atenção e achou que seus ombros haviam se arqueado um pouco.
"Pensei
que ele não viria até oito horas da manhã", disse
rapidamente. "Havia um outro doutor com ele. Um neurologista.
"Um
neurologista," ela disse.
Howard
assentiu. Seus ombros estavam se aproximando, ela pôde perceber. "O
quê que eles disseram, Howard?" Pelo amor de Deus, o que eles
disseram? O que é?
"Disseram
que vão levá-lo e fazer exames nele, Ann. Eles acham que vai ter
que operar, meu bem. Meu bem, eles vão operar. Não conseguem
descobrir porque ele não acorda. É mais do que apenas choque ou
concussão, disso eles já sabem. Está no crânio dele, a fratura,
tem algo, algo a ver com isso, eles acham. Então eles vão operar.
Tentei ligar para você, mas acho que já tinha saído de casa."
"Ai,
meu Deus", ela exclamou. “Oh, por favor, Howard, por favor",
disse, segurando os braços dele. "Olha!" Howard disse.
"Scotty! Olha, Ann!" Virou-a para a cama.
O
menino tinha aberto seus olhos e, então, fechado. Abriu-os outra vez
agora. Os olhos miraram fixamente por um minuto, depois moveram-se
lentamente em sua cabeça até que descansaram em Howard e Ann, e
então viajaram para longe outra vez.
"Scotty",
sua mãe disse, movendo-se para a cama. “Ei, Scott”, seu pai
disse. "Oi, filho."
Eles
se inclinaram sobre a cama. Howard pegou a mão do filho em suas mãos
e começou a apertar e dar gentis tapinhas na mão. Ann curvou-se
sobre o menino e beijou sua testa repetidas vezes. Colocou as mãos
sobre os dois lados de sua face. "Scotty, meu bem, é a mamãe e
o papai", ela disse. "Scotty?"
O
menino olhou-os, mas sem nenhum o sinal de reconhecimento. Então sua
boca abriu, seus olhos apertaram-se e ele ganiu até que não
houvesse mais ar em seus pulmões. Seu rosto pareceu relaxar e
descontrair. Seus lábios separaram-se quando sua última respiração
foi soprada pela garganta e expirada delicadamente através dos
dentes cerrados.
Os
médicos chamaram de oclusão oculta e disseram que era um caso em um
milhão. Talvez, se tivesse sido detectado antes, de algum modo, e a
cirurgia empreendida imediatamente, poderiam tê-lo salvado. Porém,
mais do que provavelmente, não. Em todo caso, o que eles estavam
procurando? Nada tinha aparecido nos testes ou nos raios-X.
Dr..
Francis comoveu-se. "Não consigo dizer-lhes quão mal me sinto.
Sinto muito, tanto que não consigo dizer", disse enquanto os
conduzia à sala de convívio dos médicos. Havia um médico sentado
em uma cadeira com seus pés enganchados sobre a parte traseira de
uma outra cadeira, assistindo a um programa matinal na TV. Vestia o
traje verde da sala de parto, calças verdes frouxas e uma blusa
verde, e uma touca verde que cobria seu cabelo. Olhou para Howard e
Ann e depois para o Dr. Francis. Levantou-se, desligou a TV e saiu do
quarto. Dr. Francis guiou Ann até o sofá, sentou-se ao lado dela e
começou a falar em uma voz baixa, consoladora. Em um determinado
momento, inclinou-se e a abraçou. Ela conseguia sentir o peito dele
subir e descer uniformemente contra seu ombro. Manteve os olhos
abertos e deixou-o abraçá-la. Howard entrou no banheiro, mas deixou
a porta aberta. Depois de um violento acesso de choro, ligou a
torneira e lavou o rosto. Depois saiu e sentou-se na mesinha em que
havia um telefone. Olhou para o telefone como se decidisse o que
fazer primeiro. Fez algumas chamadas. Após um momento, Dr. Francis
usou o telefone.
"Há
qualquer outra coisa que eu possa fazer neste momento?” perguntou a
eles.
Howard
fez que não com a cabeça. Ann olhou fixamente para o Dr. Francis
como se incapaz de compreender suas palavras.
O
doutor levou-os à porta da frente do hospital. Pessoas entravam e
saíam. Eram onze horas da manhã. Ann estava ciente de quão
lentamente, quase relutantes, moviam-se seus pés. Pareceu-lhe que
Dr. Francis os fazia ir embora quando ela sentia que deveriam ficar,
quando permanecer seria a coisa mais certa a se fazer. Olhou para o
estacionamento lá fora, então virou-se para trás e olhou para a
fachada do hospital. Começou a balançar a cabeça. "Não,
Não", dizia. "Não posso deixá-lo aqui. Não." Ouviu
a si mesma dizer aquilo e pensou no quão injusto era que as únicas
palavras que saíam da sua boca eram as usadas nos programas de TV em
as pessoas foram aturdidas por mortes violentas ou repentinas. Ela
queria que as palavras fossem dela. "Não", ela disse, e
por alguma razão veio à memória a cabeça da mulher do Negro
recostada no próprio ombro. "Não", disse outra vez.
"Falarei
com você mais tarde", o doutor dizia a Howard. "Há ainda
algumas coisas que precisam ser feitas, coisas que precisam ser
esclarecidas para o nosso contentamento. Algumas coisas que
necessitam explicação."
"Uma
autópsia", Howard atalhou. Dr. Francis assentiu.
"Eu
entendo", Howard murmurou. Então disse, "Oh, Jesus. Não,
eu não compreendo, doutor. Eu não consigo. Eu não consigo. Apenas
não consigo."
Dr.
Francis passou o braço por trás dos ombros de Howard. "Sinto
muito. Deus, como eu sinto." Soltou os ombros de Howard e
segurou sua mão. Howard olhou para a mão, e então apertou-a. Dr.
Francis envolveu Ann nos braços mais uma vez. Pareceu completamente
cheio de uma bondade que ela não compreendeu. Deixou a cabeça
descansar sobre seu ombro, mas os olhos permaneceram abertos. Ficou
olhando para o hospital. Enquanto saia do estacionamento, olhou para
o hospital atrás de si.
Em
casa, sentou-se no sofá com as mãos nos bolsos do casaco. Howard
fechou a porta do quarto do filho. Colocou a cafeteira para funcionar
e então encontrou uma caixa vazia. Tinha pensado em recolher algumas
das coisas do menino que estavam espalhadas pela sala de estar. Mas
preferiu sentar-se ao lado dela no sofá, empurrou a caixa para o
canto e inclinou-se para a frente, com os braços entre os joelhos.
Começou a chorar. Ela puxou sua cabeça sobre o colo e deu tapinhas
em seu ombro. "Ele se foi", consolou-o Ann. Continuou dando
tapinhas no ombro dele. Em meio a seus soluços, conseguia ouvir a
cafeteira assobiar na cozinha. "Passou, passou", disse ela
carinhosamente. "Howard, ele se foi. Ele se foi e agora teremos
que nos acostumar a isso. A estar sozinhos."
Depois
de um tempo, Howard levantou-se e começou a andar aleatoriamente
pelo quarto com a caixa, sem colocar nada dentro, apenas amontoando
algumas coisas do lado do sofá. Ela continuava sentada com as mãos
nos bolsos do casaco. Howard pôs a caixa no chão e trouxe o café
para a sala de estar. Mais tarde, Ann ligou para alguns parentes.
Depois que cada chamada tinha sido completada e o outro lado
respondido, Ann deixava escapar algumas palavras e chorava por um
minuto. Então explicava calmamente, com voz medida, o que tinha
acontecido e lhes falava sobre os procedimentos. Howard levou a caixa
para a garagem, onde viu a bicicleta do filho. Deixou cair a caixa e
sentou-se no chão de cimento ao lado da bicicleta. Levantou a
bicicleta desajeitadamente, de modo que ela encostava no seu tórax.
Abraçou-a. O pedal de borracha entrava no seu peito. Girou a roda
para a frente.
Ann
desligou o telefone assim que falou com sua irmã. Procurava por
outro número quando o telefone tocou. Atendeu no primeiro toque.
"Alô",
disse ela, e ouviu alguma coisa ao fundo, um som ruidoso. "Alô!",
repetiu. "Pelo amor de Deus", exclamou. "Quem é? O
quê que você quer?"
"Seu
Scotty, deixei-o pronto para você", a voz de homem disse. "Você
se esqueceu dele?"
"Seu
crápula!", gritou pelo receptor. "Como você pode fazer
isso, seu filho da puta perverso?". "Scotty", o homem
disse. "Você se esqueceu do Scotty?" Então, desligou na
cara dela.
Howard
ouviu o grito e entrou, vendo-a com a cabeça sobre os braços em
cima da mesa, chorando. Pegou o telefone e ouviu o tom de discagem.
Bem
depois, logo antes da meia-noite, depois de eles terem lidado com
muitas coisas, o telefone tocou de novo. "Você atende",
avisou
ela.
"Howard, é ele, eu sei." Estavam sentados na mesa da
cozinha com o café à
sua
frente. Howard tinha um pequeno copo de uísque ao lado de sua
xícara. Atendeu no terceiro toque.
"Alô.
Quem é? Alô! Alô!" A linha caiu. "Desligou", disse
Howard. "Quem quer que fosse.
"Era
ele", afirmou Ann. "Esse cretino. Eu queria matá-lo,"
prosseguia ela. "Eu queria dar um tiro nele e vê-lo agonizar".
“Meu
Deus, Ann”, disse Howard.
"Você
conseguiu ouvir alguma coisa?", perguntou Ann. "Ao fundo?
Um barulho, máquinas, alguma coisa batendo?"
"Nada
mesmo. Nada do tipo", respondeu ele. "Não deu tempo. Acho
que tinha alguma música na rádio. Sim, tinha um rádio tocando, é
só isso que consegui notar. Eu não sei o que está acontecendo; Meu
Deus!" ele disse.
Ela
balançou a cabeça. "Ah, se eu pudesse, se eu pudesse colocar
as minhas mãos nele." Então tudo veio à tona. Ela sabia quem
era. Scotty, o bolo, o número de telefone. Empurrou a cadeira pra
longe da mesa e levantou-se. "Me leve para o centro", ela
ordenou. "Howard?"
"Pera,
o que você disse?"
"O
centro. Eu sei quem é que está ligando. Eu sei quem é. É o
padeiro, o filho de uma cadela adeiro, Howard. Pedi que ele fizesse
um bolo para o aniversário do Scotty. É ele quem está ligando. Ele
é quem tem o número e fica ligando para a gente. Para cobrar aquele
bolo. O padeiro, aquele cretino."
Foram
de carro até o centro. O céu estava limpo e as estrelas se
amostravam
no
céu.
Estava frio, ligaram o aquecedor
do carro. Estacionaram na frente da padaria. Todas as lojas estavam
fechadas, mas havia carros do outro lado do estacionamento em frente
ao cinema. As janelas da padaria estavam escuras, mas quando eles
olharam através do vidro conseguiram ver uma luz que vinha do
quartinho lá atrás e, de vez em quando, um homem de avental saindo
e entrando daquela luz branca e uniforme. Pelo vidro, ela viu
os expositores e algumas mesinhas com cadeiras. Tentou entrar pela
porta. Bateu algumas vezes no vidro. Mas se o padeiro os ouviu, não
deu nenhum sinal. Não olhou para eles.
De
carro, foram para os fundos da padaria e estacionaram. Saíram do
carro. Ali, uma janela iluminada, alta demais para que vissem o lado
de dentro. Uma placa perto da porta dos fundos dizia PADARIA ARMAZÉM,
PEDIDOS ESPECIAIS. Ela podia ouvir um rádio tocando baixinho lá
dentro e a ruidosa porta de um forno (abrindo?). Bateu na porta e
esperou. Bateu outra vez, fazendo ainda mais barulho. O rádio baixou
e deu lugar a um som de raspagem, o som de alguma coisa, uma gaveta,
sendo aberta e depois fechada.
Alguém
destrancou a porta e a abriu. O padeiro encarou-os sob aquela luz.
"Estamos fechados", avisou ele. "O que vocês querem
uma hora dessas? É meia-noite. Vocês estão bêbados ou algo do
tipo?"
Ela
ficou sob a luz que saía pela porta aberta. Ele piscou seus cílios
pesados quando a reconheceu. "É você", ele disse.
"Sou
eu", respondeu ela. "Mãe do Scotty. Este é o pai do
Scotty. Nós gostaríamos de entrar."
O
padeiro falou, "estou ocupado agora. Tenho trabalho a fazer."
Mas
ela já tinha passado para dentro da porta. Howard entrou logo atrás
dela. O padeiro recuou. "Tem cheiro de padaria aqui dentro. Não
tem cheiro de padaria, Howard?"
"O
que vocês querem?" o padeiro perguntou. "Talvez você
queira seu bolo. É isso, você decidiu que quer seu bolo. Você
pediu um bolo, não foi?"
"Você
é bem esperto para um padeiro", disse ela. "Howard, esse é
o homem que tem ligado para a gente." Cerrou os punhos.
Encarou-o ferozmente. Havia um fogo queimando dentro dela, uma raiva
que a fez sentir maior do que era, maior do que qualquer um daqueles
homens.
"Pera
um pouco aí", o padeiro alertou. "Você veio pegar seu
bolo de três dias atrás? É isso? Eu não quero discutir com você,
senhora. Ali está ele, mofando. Dou pra você por metade do que
tinha cobrado. Não. Quer pra você? Pode ficar. Não me serve, já
não serve pra ninguém. Custou tempo e dinheiro para fazer esse
bolo. Se você o quer, tudo bem, se não, tudo bem também. Eu
preciso voltar ao trabalho." Ele olhou para eles e colocou a
língua atrás dos dentes.
"Mais
bolos", ela pediu. Sabia que estava no controle daquilo, do que
crescia dentro dela. E estava calma.
"Senhora,
eu trabalho dezesseis horas por dia nesse lugar para ganhar a vida",
o padeiro disse. Limpou as mãos em seu avental. "Trabalho dia e
noite aqui, tentando sobreviver." Um olhar que perpassou o rosto
de Ann fez o padeiro recuar e dizer, "Vai com calma." Foi
até o balcão, pegou o rolo de massas com a mão direita e começou
a batê-lo contra a palma da outra mão. "Você quer o bolo ou
não? Preciso voltar ao trabalho. Os padeiros trabalham à noite",
repetiu. Seus olhos eram pequenos, pareciam malignos, ela pensou,
quase perdidos na carne cheia de pelos que cobria sua face. Sua
garganta era grossa de gordura.
"Eu
sei que padeiros trabalham à noite", retrucou Ann. "Fazem
ligações à noite, também. Seu cretino".
O
padeiro continuava a bater com o rolo em sua mão. Olhou de relance
para Howard. "Cuidado, cuidado", disse ele a Howard.
"Meu
filho está morto", ela disse com um frio e uniforme desfecho.
"Foi atropelado por um carro na manhã de segunda-feira.
Estávamos acompanhando-o até a hora em que morreu. Mas, claro, não
podemos imaginar que você sabia disso, não é? Os padeiros não
sabem de tudo – sabem, Sr. Padeiro? Mas ele está morto. Está
morto, seu canalha!" Tão rápido quanto brotou dentro
dela, sua raiva despencou, dando lugar a outra coisa, uma tontura
nauseante. Inclinou-se sobre a mesa de madeira que estava cheia de
farinha de trigo, colocou as mãos no rosto e começou a chorar, com
os ombros movendo-se para frente e para trás. "Não é justo",
ela disse. "Não é, não é justo."
Howard
pôs a mão nas contas de Ann e olhou para o padeiro. "Que
vergonha", apontou Howard. "Que vergonha."
O
padeiro pôs o rolo no balcão. Desamarrou seu avental e jogou-o ali
em cima. Olhou para eles e então balançou a cabeça devagar. Tirou
uma cadeira de baixo da mesa de jogos, que continha papéis e
recibos, uma calculadora e uma lista telefônica. "Sente-se por
favor", pediu ele. "Deixe-me pegar uma cadeira para você",
disse a Howard. "Sente-se aí, por favor." O padeiro foi
até a parte da frente da loja e voltou com duas pequenas cadeiras de
ferro fundido. "Por favor, sentem-se, pessoal."
Ann
limpou os olhos e virou-se para o padeiro. "Eu queria matar
você", contou. "Queria ver você morto." O padeiro
limpou uma parte da mesa para eles. Colocou a calculadora de lado,
junto com as pilhas de papéis de nota e recibos. Jogou a lista
telefônica no chão, que aterrissou com um barulho. Howard e Ann
sentaram e puxaram suas cadeiras para mais perto da mesa. O padeiro
também se sentou.
"Deixem-me
dizer o quanto estou arrependido", dizia o padeiro, apoiando os
cotovelos na mesa. "Só Deus sabe o quanto. Escutem. Sou apenas
um padeiro. Não quero ser qualquer outra coisa. Talvez um dia,
talvez anos atrás, eu era um tipo diferente de ser humano. Esqueci.
Não sei ao certo. Mas não sou mais, se é que um dia fui. Agora sou
apenas um padeiro. Isso não retira o que fiz, eu sei. Mas estou
profundamente arrependido. Sinto muito pelo seu filho, sinto muito
pela minha parte nisso", o padeiro disse. Abriu suas mãos sobre
a mesa e virou-as para revelar as palmas. "Não tenho filhos,
eu, então só consigo imaginar o que vocês estão sentindo. Tudo
que posso fazer agora é pedir desculpas. Perdoem-me se puderem",
suplicava o padeiro. "Não sou um homem mau, eu acho. Não sou
perverso, como você disse no telefone. Você precisa entender que
tudo se resume ao fato de que, ao que parece, não sei mais lidar com
pessoas. Por favor", o homem dizia, "posso perguntar se
vocês conseguem encontrar perdão para mim nos seus corações?"
Estava
quentinho na padaria. Howard levantou-se da mesa e tirou o casaco.
Ajudou Ann a tirar o seu. O padeiro fitou-os por um minuto, assentiu
e levantou-se da mesa. Foi até o forno e desligou alguns botões.
Pegou copos e serviu café em uma cafeteira elétrica. Colocou uma
caixinha de creme na mesa e um pote de açúcar.
"Acho
que você precisa comer alguma coisa", disse o padeiro. "Espero
que comam alguns dos meus bolinhos de rolo. Vocês precisam comer e
continuar. Comer é uma coisinha boa em tempos como esse."
Ele
os serviu rolos de canela saídos do forno, com a cobertura ainda
rala. Colocou manteiga na mesa e facas para passar a manteiga. Então
o padeiro sentou à mesa com eles. Esperou. Esperou até que cada um
pegasse um bolinho da bandeja e começou a comer. "Faz bem
comer", disse ele, prestando atenção nos outros. "Tem
mais. Comam mais. Comam tudo que puderem. Tem todos os bolinhos do
mundo aqui."
Comeram
os bolos e beberam café. Ann estava de repente com fome, e os bolos
estavam quentinhos e doces. Comeu três deles, o que deixou o padeiro
alegre. Então ele começou a falar. Escutaram com atenção. Embora
estivessem cansados e angustiados, escutaram o que o padeiro tinha a
dizer. Concordavam enquanto o padeiro falava de solidão e da
sensação de dúvida e limitação que surgiram quando era mais
jovem. Contou-lhes como era não ter tido filhos por todo esses anos.
Repetir os dias com os fornos para sempre cheios e para sempre
vazios. As comidas de festa, as celebrações em que ele tinha
trabalhado. Cobertura que chegava ao calcanhar. Os pequeninos casais
que fincou nos bolos. Centenas deles. Não, milhares agora.
Aniversários. Imagine todas aquelas velas queimando. Era um labor
necessário. Ele era padeiro. Estava contente por não ser um
florista. Era melhor alimentar as pessoas. Cheirava melhor que flores
em qualquer ocasião.
"Sinta
o cheiro", o padeiro disse, abrindo um pedaço de pão escuro.
"É um pão pesado, mas muito saboroso." Cheiraram-no,
então ele fez com que provassem. Tinha cheiro de melaço e grãos
grossos. Eles o escutaram. Comeram o que puderam. Engoliram o escuro
pão. Parecia dia debaixo daqueles raios de luz fluorescente.
Continuaram conversando até de manhã cedo. A luz pálida raiava
para o alto nas janelas. E nem pensavam em ir embora.
-1983-
Ps.: This translation doesn't intend to make any profit. All rights for the original text are reserved to the author.
Obs.: Essa tradução não pretende o lucro. Todos os direitos da obra original estão reservados ao autor.