sábado, 9 de junho de 2018

[TRADUÇÃO] Uma Coisinha Boa, de Raymond Carver


Olá, galera que acompanha este medíocre blog. Escrevo hoje com muita felicidade porque revisitei minha tradução antiga do texto A Small, Good Thing, de Raymond Carver, e trago aqui o resultado. Garanto que a leitura, rápida e dolorida como uma bala, vai deixá-los mais espertos à fragilidade da vida e à empatia em eventos cotidianos. É uma obra de arte desse renomado escritor, que de tão importante para a literatura americana, fez surgir a International Raymond Carver Society. Aproveitem.
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Hello, followers of this mediocre blog. I write today with happiness on my face because I have revisited my old translation of the text A Small, Good Thing, by Raymond Carver, and I bring here the results. I can affirm that this reading, quick and painful like a bullet, will make you aware to the frailty of life and to empathy in day-to-day events. This is a fine piece by this renowned writer, who was so important to the American Literature that people have created the International Raymond Carver Society. Enjoy!

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UMA COISINHA BOA

No sábado à tarde ela foi de carro até a padaria do centro. Depois de vasculhar um fichário com fotografias de bolos coladas com fita, pediu um de chocolate, o favorito da criança. O bolo que escolheu era decorado com uma nave espacial e uma plataforma de lançamento abaixo de estrelinhas brancas espalhadas, com um planeta feito de glacê vermelho do outro lado. O nome do garoto, SCOTTY, apareceria em letras verdes acima do planeta. O padeiro, que era um homem velho, de pescoço grosso, escutou calado quando ela o contou que o filho faria oito anos na próxima segunda. O padeiro usava um avental branco que se assemelhava a uma bata. Alças presas debaixo dos braços davam a volta por trás do seu corpo e voltavam à frente fixando-se debaixo da cintura gorda. Limpou as mãos no avental enquanto prestava atenção nela. Manteve os olhos nas fotografias e a deixou falar. Deixou-a à vontade. Havia acabado de chegar no trabalho e ficaria lá a noite toda, fazendo pães; não estava com pressa nenhuma.
Ela deu seu nome, Ann Weiss, e seu número de telefone. O bolo estaria pronto na manhã de segunda, recém-saído do forno, bem antes do aniversário da criança naquela tarde. O padeiro não foi simpático. Não houve nenhuma cortesia entre eles; somente a troca mínima de palavras, de informações necessárias. Ele a fez sentir-se desconfortável e ela não gostou. Enquanto ele se inclinava sobre o balcão com a caneta na mão, Ann analisou seus traços grosseiros e se perguntou se ele já fizera qualquer coisa na vida além de ser padeiro. Ela era mãe e tinha trinta e três anos. Na sua cabeça, todo mundo, especialmente na idade do padeiro – um homem com idade suficiente para ser seu pai – deveria ter filhos que passaram por essa época especial de bolos e festas de aniversário. Isso deve ser algo em comum entre eles, pensou ela. Mas ele foi brusco – não rude, apenas brusco. Ela desistiu de tentar ser sua amiga. Olhou para os fundos da padaria e viu uma comprida e pesada mesa de madeira, com formas de alumínio empilhadas em um dos cantos; do lado da mesa, um contentor de metal cheio de gavetas vazias. Havia lá um fogão enorme. Um rádio tocava música country.
O padeiro terminou de anotar as informações no cartão de pedido especial e fechou o fichário. Olhou para ela e disse, “Segunda de manhã”. Ela agradeceu e dirigiu até sua casa.
Na segunda de manhã, o aniversariante andava para a escola com outro garoto. Passavam um pacote de batatinha frita para lá e para cá e o aniversariante tentava descobrir o que seu amigo pretendia lhe dar de presente de aniversário naquela tarde. Sem prestar atenção, o aniversariante deu um passo fora da calçada e foi atropelado por um carro. Caiu sobre um lado do corpo com a cabeça na valeta e as pernas no meio da rua. Seus olhos estavam fechados, mas suas pernas se moviam para frente e para trás como se estivesse tentando escalar alguma coisa. Seu amigo deixou as batatinhas caírem e começou a chorar. O carro já estava a uns trinta metros quando parou no centro da rua. O homem no banco do motorista olhou para trás por cima dos ombros. Esperou até que o garoto levantasse, instável. O menino bamboleou um pouco. Parecia tonto, mas bem. O motorista passou a marcha e foi embora.
O aniversariante não chorou, mas também não tinha nada a dizer sobre nada. Ele não respondeu quando seu amigo indagou sobre a sensação de ser atropelado. Caminhou até sua casa e seu amigo foi para a escola. Mas depois que o aniversariante estava dentro de casa, contando à sua mãe o que aconteceu – ela sentada no sofá, segurando a mão dele no colo, dizendo, “Scotty, querido, tem certeza de que está bem, bebê?” pensando em ligar para o médico mesmo assim – ele deitou no sofá, fechou os olhos e amoleceu. Quando não conseguiu acordá-lo, Ann correu para o telefone e ligou para o marido no trabalho. Howard pediu pra que ela ficasse calma, ficasse calma, então chamou uma ambulância para o menino e partiu para o hospital.
É óbvio que a festa de aniversário foi cancelada. O menino estava no hospital com uma concussão leve e em estado de choque. Havia vomitado e seus pulmões absorveram fluidos que precisavam ser bombeados para fora ainda naquela tarde. Agora ele pareia estar simplesmente em um sono muito profundo – mas não um coma, Dr. Francis enfatizou, não coma, quando ele viu a preocupação nos olhos dos pais. Às onze em ponto daquela noite, quando o garoto aparentava dormir bem confortável depois dos muitos raios-x e do trabalho laboratorial, e tudo era só uma questão de o garoto acordar e caminhar por aí, Howard deixou o hospital. Ann e ele estavam no hospital com a criança desde aquela tarde e ele ia rápido em casa tomar banho e trocar de roupa. “Estarei de volta em uma hora,” disse. Ela concordou com a cabeça. “Está tudo bem”, respondeu. “Vai ficar tudo bem por aqui”. Ele a beijou na testa e deram-se as mãos. Ann sentou na cadeira ao lado da cama e olhou para a criança. Esperava que ele acordasse e ficasse bem. Só então poderia começar a relaxar.
Howard dirigiu do hospital a sua casa. Ia muito rápido pelas ruas molhadas e escuras, então deu por si e diminuiu a velocidade. Até agora, tinha vivido tranquilamente e bastante satisfeito – faculdade, casamento, mais um ano de certificação avançada em negócios, uma pequena parceria com uma firma de investimentos. Ser pai. Estava feliz e, até agora, com sorte – e sabia disso. Seus pais ainda eram vivos, seus irmãos e sua irmã estabelecidos, seus amigos da faculdade saíram à procura de seus lugares no mundo. Até agora, tinha se mantido longe de qualquer grande dano, daquelas forças que ele sabia existir e que poderiam aleijar ou derrubar um homem se a sorte estivesse ruim, se as coisas subitamente mudassem. Dobrou na entrada da garagem e estacionou. Sua perna esquerda começou a tremer. Permaneceu sentado dentro do carro por um minuto e tentou lidar com a situação atual de uma maneira racional. Scotty tinha sido atropelado e estava no hospital, mas ia ficar tudo bem com ele. Howard fechou os olhos e passou a mão pelo rosto. Saiu do carro e foi até a porta da frente. O cachorro latia dentro da casa. O telefone tocava e tocava enquanto ele destrancava a porta e tateava a parede procurando o interruptor. Não deveria ter deixado o hospital, não deveria. “Mas que coisa!”, exclamou. Agarrou o aparelho e disse, “Eu acabei de entrar!”
Tem um bolo aqui que ninguém veio buscar”, a voz do outro lado da linha alertava.
O quê?”, Howard perguntou.
Um bolo”, a voz repetiu. “Um bolo de dezesseis dólares”.
Howard segurava o aparelho contra a orelha tentando entender a situação. “Não sei nada desse bolo”, reclamou. “Pelo amor de Deus, do que você está falando?”
Não me venha com essa”, retrucou a voz.
Howard desligou o telefone. Foi até a cozinha e se serviu de um pouco de uísque. Ligou para o hospital. Mas a condição do garoto continuava a mesma; estava dormindo e nada mudara ali. Enquanto a água enchia a banheira, Howard ensaboou seu rosto e se barbeou. Acabava de esticar na banheira e fechar os olhos quando o telefone tocou de novo. Arrastou-se para fora, pegou uma toalha e correu pela casa dizendo “Burro, burro”, por ter deixado o hospital. Mas quando atendeu o telefone e gritou “Alô!”, não houve som nenhum do outro lado da linha. Então, desligaram.
Chegou no hospital pouco depois da meia-noite. Ann ainda estava sentada na cadeira ao lado da cama. Olhou para Howard e depois para a criança. Os olhos da criança permaneciam fechados e a cabeça envolta em gaze. Sua respiração estava silenciosa e regular. Prendia-se a um equipamento acima da cama um recipiente de glicose com um tubo que saía para o braço do garoto.
Como ele está?” Howard perguntou. “O que é tudo isso?” movimentando a mão na direção da glicose e do tubo.
Ordens do Dr. Francis,” respondeu ela. “Ele precisa se nutrir. Precisa manter a força. Por que ele não acorda, Howard? Eu não entendo, se ele está bem.”
Howard pousou uma mão sobre a nuca dela. Passou seus dedos pelos seus cabelos. “Ele vai ficar bem. Vai acordar em pouco tempo. Dr. Francis sabe das coisas”.
Depois de um tempo, ele disse, “Talvez você devesse ir para casa e descansar um pouco. Eu vou ficar aqui. Só não ature aquela criatura que fica ligando. Desligue logo”.
Quem que fica ligando?” ela perguntou.
Eu não sei quem é, mas não tem nada melhor para fazer do que ligar para as pessoas. Agora vá.”
Ela balançou a cabeça. “Não”, ela disse, “estou bem.”
Sério”, ele insistiu. “Vá para casa por enquanto, depois volte e fique no meu lugar pela manhã. Vai ficar tudo bem. O que foi que o Dr. Francis disse? Scotty vai ficar bem. Não precisamos nos preocupar. Ele está apenas dormindo, só isso.”
Uma enfermeira abriu a porta. Cumprimentou-os com a cabeça enquanto ia em direção à cama. Tirou o braço esquerdo do menino debaixo da coberta e encostou os dedos no seu punho, encontrou o pulso e então consultou o relógio. Em pouco tempo, pôs o braço debaixo da coberta e foi para o pé da cama, onde escreveu alguma coisa em uma prancheta anexada ali.
Como ele está?”, perguntou Ann. A mão de Howard era um peso nos seus ombros. Começara a sentir a pressão dos dedos dele.
Estável”, a enfermeira disse. Então continuou, “O médico estará de volta em alguns instantes. Já chegou no hospital. Está fazendo as rondas no momento.”
Eu estava dizendo aqui que talvez ela quisesse ir pra casa e descansar um pouco”, sugeriu Howard. “Depois que o doutor vier”, ele disse.
Ele poderia fazer isso, sim”, a enfermeira concordou. “Acho que vocês dois deveriam se sentir à vontade para fazer isso, se quisessem.” A enfermeira era uma loirona da Escandinávia. Havia resquícios de sotaque na sua fala.
Vamos ver o que o médico diz”, Ann disse. “Eu quero falar com o médico. Não acho que ele deveria estar dormindo assim. Não acho que isso é um bom sinal.” Levou as mãos aos olhos e deixou a cabeça se mover um pouco para a frente. Howard apertou mais forte o ombro dela, sua mão deslizou para o pescoço e seus dedos começaram a pressionar os músculos ali.
Dr. Francis estará aqui em alguns minutos”, a enfermeira retrucou. Depois, deixou a sala.
Howard fitou seu filho por um tempo, o pequeno peito se elevando e abaixando quietamente por baixo das cobertas. Pela primeira vez desde os minutos terríveis após o telefonema de Ann ao seu escritório, sentiu um medo genuíno originar-se nos seus braços e pernas. Começou a agitar a cabeça. Scotty estava bem, mas ao invés de dormir em casa, na sua própria cama, estava na cama de um hospital com ataduras na cabeça e um tubo no braço. Mas era dessa ajuda que ele precisava no momento.
Dr. Francis entrou e apertou as mãos de Howard, apesar de terem se conhecido há algumas horas apenas. Ann se levantou da cadeira. “Doutor?”
Ann”, ele respondeu e a cumprimentou com a cabeça. “Primeiro, vamos ver como ele está”, disse o doutor. Foi para o lado da cama e tirou o pulso do menino. Levantou uma pálpebra e depois a outra. Howard e Ann ao lado do doutor, assistiam. Então, o médico afastou as cobertas e auscultou o coração e o pulmão do garoto com seu estetoscópio. Pressionou os dedos aqui e ali no abdômen. Quando terminou, foi ao pé da cama e analisou o histórico. Viu as horas, anotou alguma coisa no histórico e então olhou para Howard e Ann.
Doutor, como ele está?” Howard indagou. “Qual o problema dele exatamente?”
Por que ele não acorda?” insistiu Ann.
O doutor era um rapaz bonito de ombros largos, com o rosto queimado de sol. Vestia um terno de três peças azul, uma gravata listrada e abotoaduras de marfim. Seu cabelo grisalho estava penteado de um lado a outro e ele parecia ter vindo de um concerto. “Ele está bem”, o médico afirmou. “Nada para se espernear. Poderia estar melhor, eu acho, mas está tudo bem com ele. Ainda assim, queria que ele já tivesse acordado. Ele deve acordar logo, logo.” O médico olhou para o garoto de novo. “Vamos saber um pouco mais em algumas horas, depois que os resultados de outros testes saírem. Mas ele está bem, acreditem, exceto pela fratura do tamanho de um fio de cabelo que tem no crânio. Sim, ela existe.”
Ah, não”, Ann disse.
E uma pequena concussão, como disse antes. E, claro, vocês sabem, ele está em choque”, o médico os fazia lembrar. “Às vezes acontece em casos de choque. Esse sono.”
Mas ele está fora de perigo?” Howard perguntou. “Você disse antes que ele não está em coma. Não é um coma, né, doutor?” Howard esperou. Olhou fixo para o médico.
Não, eu não quero chamar isso de coma”, olhou de relance para o garoto mais uma vez. “Ele está apenas em um sono muito profundo. É uma medida restaurativa que o corpo está tomando por si próprio. Ele está fora de qualquer perigo real, com certeza. Sim. Mas vamos saber mais quando ele acordar e os testes saírem”, certificou o médico.
É um coma”, Ann exclamou. “Um tipo.”
Não é um coma ainda, não exatamente”, o médico disse. “Eu não chamaria isso de coma. Enfim, não ainda. Ele sofreu um choque. Em casos de choque esse tipo de reação é bastante comum; é uma reação temporária a um trauma corporal. Coma. Bem, coma é um estado de inconsciência profundo e prolongado, alguma coisa que poderia se estender por dias, ou até semanas. Scotty não está nesse nível, não até onde podemos distinguir. Estou certo de que suas condições vão mostrar melhora pela manhã. Estou apostando que vai. Vamos saber mais quando ele acordar, o que agora não deve demorar. Mas, claro, vocês podem fazer como quiserem e ficar aqui ou ir para casa por um tempinho. Sintam-se à vontade para sair do hospital por enquanto, se quiserem. Não é fácil, eu sei.” O médico fitou o garoto novamente, observando, então virou-se para Ann e disse, “Tente não se preocupar, mãezinha. Acredite em mim, estamos fazendo tudo que pode ser feito. Agora é só questão de um pouquinho mais de tempo.” Cumprimentou-a com a cabeça, apertou a mão de Howard de novo e deixou a sala.
Ann pôs a mão sobre a cabeça do filho. “Pelo menos ele não está com febre”, disse aliviada. Então se sobressaltou,
Mas, meu Deus, ele está muito frio. Howard? Era para ele estar gelado assim? Sinta aqui a testa dele.”
Howard tocou nas têmporas do filho. Sua própria respiração tinha ficado mais devagar. “Eu acho que era mesmo pra ele estar assim no momento”, ele disse. “Ele está em choque, lembra? É o que o doutor disse. O doutor estava aqui agorinha. Teria dito alguma coisa se o Scotty não estivesse bem.”
Ann permaneceu ali por mais um tempo, mordendo os lábios. Então, passou para a sua cadeira e sentou.
Howard sentou na cadeira próxima à dela. Eles se olharam. Ele queria dizer alguma coisa para acalmá-la, mas também tinha medo. Pegou a mão dela, colocou no seu colo, e isso o fez sentir melhor, a mão dela estar ali. Tomou sua mão e apertou. Depois, só segurou. Sentaram-se assim por um tempo, assistindo ao garoto sem falar nada. Vez ou outra ele apertava sua mão. No fim, ela tirou a mão.
Estive rezando”, disse Ann.
Howard concordou com a cabeça.
Ela continuou, “Quase pensei que tinha esquecido como se faz, mas enfim lembrei. Tudo o que eu tive que fazer foi fechar os olhos e dizer, ‘Por favor, meu Deus, nos ajude – ajude o Scotty’ e o resto foi fácil. As palavras estavam logo ali. Quem sabe se você rezasse também...”, sugeriu.
Já rezei”, ele disse. “Rezei esta tarde – na tarde de ontem, quer dizer – depois que você ligou, enquanto eu dirigia para o hospital. Tenho rezado”, ele disse.
Isso é bom”, aprovou ela. Pela primeira vez, sentiu que os dois estavam juntos nisso, nessa confusão. Deu-se conta, perplexa, de que até agora tudo estava acontecendo para ela e Scotty. Ela não tinha deixado Howard entrar nessa, embora o marido estivesse ali e precisasse disso desde o início. Sentiu-se feliz por ser sua esposa.
A enfermeira entrou, tirou o pulso do garoto novamente e checou o fluxo do recipiente pendurado sobre a cama.
Uma hora depois, outro médico entrou. Disse que seu nome era Parsons, da radiologia. Tinha um bigode peludo. Usava mocassins, uma camisa de caubói e uma calça jeans.
Vamos levá-lo lá para baixo para tirar algumas chapas”, avisou. “Precisamos de mais algumas chapas e queremos uma tomografia.”
O quê?” Ann perguntou. “Uma tomografia?” Posicionou-se entre o novo médico e a cama. “Achei que vocês já haviam tirado todos os seus raios-x.”
Sinto informar que precisamos de mais alguns”, ele disse. “Nada com que se preocupar. Só precisamos de mais algumas chapas e queremos fazer uma tomografia do cérebro dele.”
Meu Deus”, exclamou Ann.
Isso é um procedimento perfeitamente normal em casos como este”, o novo médico disse. “Só precisamos descobrir de certeza por que ele não acordou ainda. É um procedimento normal e nada para causar alarme. Vamos levá-lo lá para baixo em alguns minutos”, avisou o médico.
Pouco depois, dois enfermeiros entraram na sala com uma maca. Eram rapazes negros em uniformes brancos, trocaram algumas palavras em uma língua estrangeira enquanto desengatavam o garoto do tubo e o passavam da cama para a maca. Empurraram-no sala afora. Howard e Ann entraram no mesmo elevador. Ann fitava seu filho. Fechou os olhos enquanto o elevador começava sua descida. Os enfermeiros, um em cada ponta da maca, não falavam, embora certa vez um dos homens tenha feito um comentário na língua deles, e o outro tenha concordado com a cabeça vagarosamente em resposta.
Mais tarde naquela mesma manhã, assim que o sol começava a iluminar as janelas na sala de espera fora do departamento de raio-x, trouxeram o garoto para fora e o levaram para seu quarto. Howard e Ann subiram no elevador com ele mais uma vez, e mais uma vez eles tomaram seu lugar ao lado da cama. Esperaram o dia inteiro, mesmo assim o garoto não acordou. De vez em quando, um deles saía da sala para tomar café na cafeteria do andar de baixo e, então, como se lembrando subitamente e sentindo-se culpado, levantava da mesa e corria de volta para a sala. Dr. Francis veio de novo naquela tarde, examinou o garoto mais uma vez e então saiu depois de dizer que o menino iria dar algum sinal e poderia acordar a qualquer momento. Enfermeiras, diferentes daquelas enfermeiras da noite anterior, entravam de tempos em tempos. Uma mulher jovem do laboratório bateu na porta e entrou na sala. Vestia uma calça social e blusa brancas e carregava uma bandejinha com objetos que colocou na estante ao lado da cama. Sem dizer uma palavra, tirou sangue do braço do garoto. Howard fechou os olhos quando a mulher achou o lugar certo no braço do garoto e enfiou a agulha.
Eu não entendo”, Ann disse para a mulher.
Ordens do doutor”, redarguiu a moça. “Só faço o que me mandam. Eles dizem tirem o sangue desse aqui, eu tiro. O que há de errado com ele, afinal?”, perguntou. “Ele é um doce.”
Ele foi atropelado”, Howard respondeu. “O motorista fugiu.”
A jovem balançou a cabeça e olhou novamente para o garoto. Então recolheu sua bandeja e deixou a sala.
Por que ele não acorda?”, questionou Ann. “Howard? Quero algumas respostas desse pessoal.”
Howard não disse nada. Sentou-se de novo na cadeira e cruzou as pernas. Passou a mão no rosto. Olhou para seu filho e se ajeitou na cadeira, fechou os olhos e foi dormir.
Ann andou até a janela e olhou para o estacionamento lá fora. Era noite, e carros entravam e saíam do estacionamento com as luzes acesas. Parou na janela com suas mãos agarradas ao peitoril e sentiu lá no fundo que eles agora estavam passando por algo, algo difícil. Estava com medo, seus dentes começaram a tilintar até que ela apertou o maxilar. Viu um carro grande parar na frente do hospital e uma pessoa, uma mulher com um casaco longo, entrar no carro. Desejou ser aquela mulher e que alguém, qualquer pessoa, estivesse levando-a para algum outro lugar, onde ela encontraria Scotty esperando por ela quando saísse do carro, pronto para dizer Mãe e se deixar prender pelos braços dela. Pouco tempo depois, Howard acordou. Olhou para o garoto de novo. Então, levantou-se da cadeira, alongou-se, e foi para o lado da mulher na janela. Ambos vislumbraram o estacionamento. Não disseram nada. Mas agora pareciam sentir o interior do outro, como se a preocupação os tivesse feito transparentes de uma maneira perfeitamente natural.
A porta abriu e o Dr. Francis entrou. Ele vestia paletó gravata diferentes dessa vez. Seu cabelo grisalho estava penteado de um lado a outro e ele parecia ter se barbeado há pouco. Foi direto para a cama e examinou o garoto. “Ele já deveria ter se recuperado. Não há motivos para isso”, ele disse. “Mas eu posso dizer para vocês que estamos todos convencidos que ele está fora de qualquer perigo. Só vamos nos sentir melhores quando ele acordar. Não há razão, absolutamente nenhuma, para que ele não se recupere. Logo, logo. Ah, ele vai ter uma boa de uma dor de cabeça quando acordar, podem contar com isso. Mas todos os seus sinais estão bem. Estão normais como deveriam.”
Então é um coma?”, Ann perguntou.
O médico esfregou sua bochecha barbeada. “Vamos chamar assim por enquanto, até que ele acorde. Mas vocês devem estar esgotados. Isso é difícil. Eu sei que é difícil. Sintam-se à vontade para sair e comer alguma coisinha”, ele sugeriu. “Faria bem para vocês. Coloco uma enfermeira aqui enquanto vocês estiverem fora se forem se sentir melhor assim. Vão e comam alguma coisa.”
Eu não conseguiria comer”, Ann retrucou.
Faça o que for preciso, claro”, concordou o médico. “Enfim, eu gostaria de dizer que todos os sinais estão bons, os testes deram negativo, nada apareceu até agora, tão logo ele acorde vai sair dessa.”
Obrigado, doutor”, disse Howard. Apertou a mão do médico novamente. O médico deu um tapinha nas costas de Howard e saiu.
Acho que um de nós deveria ir para casa e ver como as coisas estão por lá”, propôs Howard. “Até porque Slug precisa ser alimentado.”
Ligue para um dos vizinhos”, sugeriu Ann. “Ligue para os Morgans. Qualquer um daria comida para um cachorro se a gente pedisse.”
Certo”, disse Howard. Depois de um tempo, adicionou, “querida, por que você não faz isso? Por que você não vai para casa e dá uma olhada nas coisas, depois volta para cá? Vai te fazer bem. Estarei aqui com ele. Sério”, ele disse. “Precisamos continuar fortes nessa. Queremos estar aqui depois que ele acordar.
Por que você não vai?”, perguntou ela. “Dê comida para o Slug. Coma, você também.”
Eu já fui”, respondeu ele. “Estive fora por exatamente uma hora e quinze minutos. Você vai para casa por uma hora, pega um ar e volta.”
Ann tentou pensar sobre aquilo, mas estava muito cansada. Fechou os olhos e, novamente, tentou pensar sobre aquilo. Depois de um tempo, disse, “Talvez eu vá para casa por alguns minutos. Talvez se eu não estiver sentada aqui olhando para ele a cada segundo, ele vai acordar e ficar bem. Você sabe. Talvez ele acorde se eu não estiver aqui. Vou para casa tomar um banho e colocar roupas novas. Vou dar comida para o Slug. Depois eu volto.”
Estarei aqui”, ele disse. “Vá para casa, querida. Vou ficar de olho nas coisas aqui.” Seus olhos estavam vermelhos e cerrados, como se ele estivesse bebendo há um bom tempo. Suas roupas estavam amarrotadas. Sua barba tinha crescido de novo. Ela tocou o rosto dele e então retirou a mão. Entendeu que ele queria ficar sozinho por um tempo, sem precisar falar ou compartilhar sua preocupação. Pegou sua bolsa do criado-mudo e ele a ajudou com o casaco.
Não vou demorar”, avisou ela.
Fique em casa e descanse um tempinho quando chegar”, recomendou ele. “Coma alguma coisa. Tome um banho. Depois que sair do banheiro, sente um pouquinho e descanse. Vai te fazer muito bem, você vai ver. Aí você volta” disse ele. “Vamos tentar não nos preocupar. Você ouviu o que o Dr. Francis falou.”
Ela parou dentro de seu casaco por um minuto tentando relembrar as palavras exatas do médico, procurando por qualquer nuance, qualquer sinal de alguma coisa por trás daquelas palavras fora o que ele tinha dito. Tentou lembrar se a expressão dele tinha mudado quando se curvou para examinar o garoto. Lembrou-se do jeito com que seus traços se compuseram enquanto ele levantava as pálpebras do garoto e auscultava sua respiração.
Foi até a porta, se virou e olhou para trás. Olhou para o filho e então para o pai. Howard assentiu com a cabeça. Ela saiu do quarto e fechou com calma a porta atrás de si. Passou pelo guichê das enfermeiras e andou pelo corredor fitando o elevador. No fim do caminho, virou à direita e entrou em uma pequena sala de espera onde uma família de negros estava sentada em cadeiras de vime. Havia um homem de meia-idade com camisa e calça cáqui, um chapéu de baseball virado para trás na cabeça. Uma mulher corpulenta usando chinelos e um vestido de ficar em casa havia desabado em uma das cadeiras. Uma adolescente que usava calça jeans, cabelo feito em dúzias de trancinhas, estava estirada em uma das cadeiras fumando um cigarro, suas pernas cruzadas na altura do tornozelo. A família olhou na direção de Ann quando ela entrou na sala. A mesinha estava cheia de pacotes de hambúrguer e copos de isopor.
Franklin”, a mulher corpulenta disse enquanto aumentava seu interesse. “Tem a ver com o Franklin?” Seus olhos se abriam. “Me diz, moça”, exclamou a mulher. “Tem a ver com o Franklin?” Ela tentava levantar da cadeira, mas o homem havia apertado sua mão em torno do braço dela. “Calma, calma”, ele dizia. “Evelyn.”
Sinto muito”, lamentou Ann. “Estou procurando o elevador. Meu filho está no hospital e não consigo encontrar o elevador.
"O elevador é logo ali, dobrando à esquerda", disse o homem, enquanto apontava o dedo.
A menina tragou seu cigarro e olhou fixamente para Ann. Seus olhos ficaram estreitos como uma fenda e seus lábios largos afastaram-se vagarosamente enquanto ela deixava a fumaça escapar. A mulher negra deixou sua cabeça cair sobre o ombro e desviou o olhar de Ann, já desinteressada.
"Meu filho foi atropelado por um carro," Ann contou ao homem. Ela parecia precisar explicar-se. "Ele está com uma concussão e uma pequena fratura no crânio, mas vai ficar bem. Está em choque agora, mas pode ser algum tipo de coma também. Isso é o que nos preocupa, na verdade, a parte do coma. Estou saindo por um tempinho, mas meu marido está com ele. Talvez ele acorde enquanto eu estiver fora.
"Isso é ruim", o homem disse e trocou de posição na cadeira. Balançou a cabeça para os lados. Olhou para a mesa e então olhou para trás, para Ann. Ela ainda estava lá, em pé. Ele disse, "Nosso Franklin... ele na sala de operação. Alguém cortou ele. Tentou matar ele. Teve uma luta lá onde ele tava. Numa festa. Disseram que ele tava só olhando. Sem incomodar ninguém. Mas hoje em dia isso não quer dizer nada. Agora na sala de operação. A gente fica só esperando e rezando, é tudo que podemos fazer agora." Fitou-a firmemente.
Ann olhou outra vez para a menina, que ainda estava a observando, e para a mulher mais velha, que mantinha a cabeça abaixada, mas cujos olhos estavam agora fechados. Ann viu aqueles lábios moverem-se silenciosamente, criando palavras. Teve grande vontade de perguntar quais palavras eram aquelas. Quis falar mais com aquelas pessoas, que estavam no mesmo tipo de espera que ela. Estava receosa, e eles estavam receosos também. Tinham aquilo em comum. Ela gostaria de ter comentado sobre o acidente, falado mais sobre Scotty para eles, que tinha acontecido no dia de seu aniversário, segunda-feira, e que ele ainda estava inconsciente. No entanto, não soube como começar. Parou e ficou olhando para eles sem dizer mais nada.
Desceu o corredor que o homem havia lhe indicado e encontrou o elevador. Esperou um minuto na frente das portas fechadas, tentando descobrir se estava fazendo a coisa certa. Levantou o dedo e apertou o botão.
Entrou na garagem e desligou o motor. Fechou os olhos e inclinou a cabeça sobre o volante por um minuto. Escutou os sons de tique-taque que o motor fazia enquanto começava a esfriar. Saiu do carro. Podia ouvir o cão latindo de dentro da casa. Foi até a porta da frente, que estava destrancada. Entrou, ligou as luzes e colocou uma chaleira com água para esquentar. Abriu uma comida de cachorro e deu de comer para Slug na varanda de trás. O cão comeu em famintas e pequenas abocanhadas. Ficou correndo pela cozinha para ver se Ann ficaria em casa.
Quando se sentou no sofá com seu chá, o telefone tocou.
"Sim!", disse quando atendeu. “Alô!”
"Sra. Weiss", uma voz de homem dizia. Era cinco horas da manhã em ponto e ela pensou ouvir sons de maquinaria ou algum tipo de equipamento ao fundo.
"Sim, sim! O que foi?", indagou. "É a Sra. Weiss. A própria. Diga o que foi, por favor.” Prestou atenção no que quer que fosse aquele som ao fundo. "É sobre Scotty? Pelo amor de Deus!"
Scotty”, disse uma voz de homem. “É sobre o Scotty, sim. Tem a ver com o Scotty, esse problema. Você se esqueceu do Scotty?”, o homem perguntou. Então, desligou.
Ann discou o número do hospital e perguntou pelo terceiro andar. Exigiu da enfermeira que atendeu o telefone informações sobre seu filho. A seguir, pediu para falar com o marido. Era, ela disse, uma emergência.
Esperou, enrolando o fio do telefone nos dedos. Fechou os olhos e sentiu uma dor no estômago. Precisava se forçar a comer. Slug veio da varanda dos fundos e deitou-se próximo aos seus pés. Balançou a cauda. A dona acariciava a orelha do cãozinho enquanto ele lambia seus dedos. Howard estava na linha.
Alguém acabou de ligar para cá”, ela alertou. Enroscou o fio do telefone na mão. “Disse que era sobre o Scotty.” E chorou.
Scotty está bem”, atalhou Howard. “Quer dizer, ele ainda está dormindo. Nada de diferente. A enfermeira esteve aqui duas vezes desde que você saiu. Uma enfermeira, ou doutora. Está tudo bem com ele.”
Um homem ligou. Disse que era sobre o Scotty”, ela contou.
Querida, descanse um tempinho, você precisa desse descanso. Deve ser o mesmo cara que eu atendi. Esqueça. Volte para cá depois que descansar. Aí nós tomamos café, ou algo assim.”
Café”, ela soltou. “Eu não quero café nenhum.”
Você sabe do que estou falando”, ele retrucou. “Suco, qualquer coisa. Sei lá. Não sei de nada, Ann. Jesus! Eu também não estou com fome. Ann, está difícil falar agora. Estou aqui no balcão. O Dr. Francis vem de novo às oito da manhã em ponto. Ele vai ter algo para nos dizer, algo mais certo. Foi isso que uma das enfermeiras disse. Ela não sabia nada mais que isso. Ann? Querida, talvez saberemos de mais alguma coisa. Às oito em ponto. Volte antes das oito. Enquanto isso, estarei aqui, e o Scotty está bem. Continua do mesmo jeito”, adicionou ele.
Eu estava tomando chá,” ela disse, “quando o telefone tocou. Eles disseram que era sobre o Scotty. Tinha um barulho ao fundo. Tinha um barulho ao fundo quando você atendeu, Howard?”
Não lembro”, respondeu ele. “Talvez o motorista do carro, talvez ele seja um psicopata e de alguma forma descobriu sobre o Scotty. Mas eu estou aqui com ele. Apenas descanse como você estava prestes a fazer. Tome um banho e volte lá para as sete, que vamos falar juntos com o doutor quando ele chegar aqui. Vai ficar tudo bem, querida. Eu estou aqui e tem doutores e enfermeiras por todo lado. Disseram que a condição dele é estável.”
Estou morta de medo”, ela disse.
Ann ligou a torneira, tirou a roupa e entrou na banheira. Lavou-se e secou-se rapidamente, sem tirar um tempo para lavar seu cabelo. Pôs roupas de baixo limpas, calças de lã e um suéter. Entrou na sala de estar, onde o cachorro olhou para ela e deixou sua cauda bater uma vez contra o chão. Estava começando a ficar claro lá fora quando ela foi para o carro.
Entrou com o carro no estacionamento do hospital e encontrou um espaço perto da porta dianteira. Sentiu que de alguma maneira obscura era responsável pelo que tinha acontecido à criança. Deixou seus pensamentos moverem-se para a família do Negro. Lembrou-se do nome Franklin e da mesa coberta com os papéis de hambúrguer e da adolescente que olhava fixamente para ela enquanto tragava seu cigarro. "Não tenha filhos", ela pedia à imagem da menina enquanto entrava pela porta da frente do hospital. "Pelo amor de Deus, não."
Pegou o elevador até o terceiro piso com duas enfermeiras que tinham acabado de começar seu plantão. Era quarta-feira de manhã, alguns minutos antes das sete. Havia uma assistente para o Dr. Madison quando as portas do elevador se abriram no terceiro piso. Saiu detrás das enfermeiras, que giraram no outro sentido e continuaram a conversa que ela tinha interrompido quando entrou no elevador. Andou pelo corredor em direção à salinha onde a família do Negro estava esperando. Agora já tinham ido, mas as cadeiras estavam dispersas de tal maneira que parecia que as pessoas tinham saltado de cima delas um minuto antes. A mesa estava bagunçada com os mesmos copos e papéis, o cinzeiro estava cheio de pontas de cigarro.
Ela parou na seção de enfermaria. Uma enfermeira estava em pé atrás do balcão, escovando seu cabelo e bocejando.
"Tinha um menino negro em cirurgia na noite passada", Ann disse. "Franklin era seu nome. Sua família estava no quarto de espera. Eu gostaria de saber sobre sua condição."
A enfermeira que estava sentada em uma mesa atrás do balcão tirou os olhos de uma tabela na frente dela e olhou para cima. O telefone zumbiu e ela pegou o receptor, mas manteve os olhos em Ann.
"Ele faleceu", disse a enfermeira no balcão. A enfermeira continuou segurando o telefone. "Você é amiga da família ou o quê?"
"Conheci a família na noite passada", Ann disse. "Meu filho está no hospital. Acho que está em choque. Não sabemos ao certo o que há de errado. Eu queria saber sobre o Franklin, e só. Obrigado." Ela caminhou pelo corredor. As portas do elevador, da mesma cor que as paredes, deslizaram e um homem careca e cadavérico, de calças brancas e sapatos de lona brancos retirou um carrinho pesado do elevador. Ela não tinha notado estas portas na noite passada. O homem levou o carrinho pelo corredor, parou na frente do quarto mais próximo do elevador e consultou uma prancheta. Depois, abaixou-se e sacou do carrinho uma bandeja. Bateu levemente na porta e entrou no quarto. Ela conseguia sentir os odores desagradáveis de comida morna enquanto o carrinho passava. Passou depressa sem olhar para nenhuma das enfermeiras e abriu a porta do quarto do filho.
Howard estava de pé na janela com as mãos para trás. Virou-se quando ela entrou. "Como ele está?" perguntou ela. Dirigiu-se para a cama. Deixou cair sua bolsa no chão ao lado do criado-mudo. Pareceu-lhe que tinha saído por muito tempo. Tocou no rosto do filho. "Howard?"
"Dr. Francis esteve aqui há pouco", Howard disse. Olhou para ele com atenção e achou que seus ombros haviam se arqueado um pouco.
"Pensei que ele não viria até oito horas da manhã", disse rapidamente. "Havia um outro doutor com ele. Um neurologista.
"Um neurologista," ela disse.
Howard assentiu. Seus ombros estavam se aproximando, ela pôde perceber. "O quê que eles disseram, Howard?" Pelo amor de Deus, o que eles disseram? O que é?
"Disseram que vão levá-lo e fazer exames nele, Ann. Eles acham que vai ter que operar, meu bem. Meu bem, eles vão operar. Não conseguem descobrir porque ele não acorda. É mais do que apenas choque ou concussão, disso eles já sabem. Está no crânio dele, a fratura, tem algo, algo a ver com isso, eles acham. Então eles vão operar. Tentei ligar para você, mas acho que já tinha saído de casa."
"Ai, meu Deus", ela exclamou. “Oh, por favor, Howard, por favor", disse, segurando os braços dele. "Olha!" Howard disse. "Scotty! Olha, Ann!" Virou-a para a cama.
O menino tinha aberto seus olhos e, então, fechado. Abriu-os outra vez agora. Os olhos miraram fixamente por um minuto, depois moveram-se lentamente em sua cabeça até que descansaram em Howard e Ann, e então viajaram para longe outra vez.
"Scotty", sua mãe disse, movendo-se para a cama. “Ei, Scott”, seu pai disse. "Oi, filho."
Eles se inclinaram sobre a cama. Howard pegou a mão do filho em suas mãos e começou a apertar e dar gentis tapinhas na mão. Ann curvou-se sobre o menino e beijou sua testa repetidas vezes. Colocou as mãos sobre os dois lados de sua face. "Scotty, meu bem, é a mamãe e o papai", ela disse. "Scotty?"
O menino olhou-os, mas sem nenhum o sinal de reconhecimento. Então sua boca abriu, seus olhos apertaram-se e ele ganiu até que não houvesse mais ar em seus pulmões. Seu rosto pareceu relaxar e descontrair. Seus lábios separaram-se quando sua última respiração foi soprada pela garganta e expirada delicadamente através dos dentes cerrados.
Os médicos chamaram de oclusão oculta e disseram que era um caso em um milhão. Talvez, se tivesse sido detectado antes, de algum modo, e a cirurgia empreendida imediatamente, poderiam tê-lo salvado. Porém, mais do que provavelmente, não. Em todo caso, o que eles estavam procurando? Nada tinha aparecido nos testes ou nos raios-X.
Dr.. Francis comoveu-se. "Não consigo dizer-lhes quão mal me sinto. Sinto muito, tanto que não consigo dizer", disse enquanto os conduzia à sala de convívio dos médicos. Havia um médico sentado em uma cadeira com seus pés enganchados sobre a parte traseira de uma outra cadeira, assistindo a um programa matinal na TV. Vestia o traje verde da sala de parto, calças verdes frouxas e uma blusa verde, e uma touca verde que cobria seu cabelo. Olhou para Howard e Ann e depois para o Dr. Francis. Levantou-se, desligou a TV e saiu do quarto. Dr. Francis guiou Ann até o sofá, sentou-se ao lado dela e começou a falar em uma voz baixa, consoladora. Em um determinado momento, inclinou-se e a abraçou. Ela conseguia sentir o peito dele subir e descer uniformemente contra seu ombro. Manteve os olhos abertos e deixou-o abraçá-la. Howard entrou no banheiro, mas deixou a porta aberta. Depois de um violento acesso de choro, ligou a torneira e lavou o rosto. Depois saiu e sentou-se na mesinha em que havia um telefone. Olhou para o telefone como se decidisse o que fazer primeiro. Fez algumas chamadas. Após um momento, Dr. Francis usou o telefone.
"Há qualquer outra coisa que eu possa fazer neste momento?” perguntou a eles.
Howard fez que não com a cabeça. Ann olhou fixamente para o Dr. Francis como se incapaz de compreender suas palavras.
O doutor levou-os à porta da frente do hospital. Pessoas entravam e saíam. Eram onze horas da manhã. Ann estava ciente de quão lentamente, quase relutantes, moviam-se seus pés. Pareceu-lhe que Dr. Francis os fazia ir embora quando ela sentia que deveriam ficar, quando permanecer seria a coisa mais certa a se fazer. Olhou para o estacionamento lá fora, então virou-se para trás e olhou para a fachada do hospital. Começou a balançar a cabeça. "Não, Não", dizia. "Não posso deixá-lo aqui. Não." Ouviu a si mesma dizer aquilo e pensou no quão injusto era que as únicas palavras que saíam da sua boca eram as usadas nos programas de TV em as pessoas foram aturdidas por mortes violentas ou repentinas. Ela queria que as palavras fossem dela. "Não", ela disse, e por alguma razão veio à memória a cabeça da mulher do Negro recostada no próprio ombro. "Não", disse outra vez.
"Falarei com você mais tarde", o doutor dizia a Howard. "Há ainda algumas coisas que precisam ser feitas, coisas que precisam ser esclarecidas para o nosso contentamento. Algumas coisas que necessitam explicação."
"Uma autópsia", Howard atalhou. Dr. Francis assentiu.
"Eu entendo", Howard murmurou. Então disse, "Oh, Jesus. Não, eu não compreendo, doutor. Eu não consigo. Eu não consigo. Apenas não consigo."
Dr. Francis passou o braço por trás dos ombros de Howard. "Sinto muito. Deus, como eu sinto." Soltou os ombros de Howard e segurou sua mão. Howard olhou para a mão, e então apertou-a. Dr. Francis envolveu Ann nos braços mais uma vez. Pareceu completamente cheio de uma bondade que ela não compreendeu. Deixou a cabeça descansar sobre seu ombro, mas os olhos permaneceram abertos. Ficou olhando para o hospital. Enquanto saia do estacionamento, olhou para o hospital atrás de si.
Em casa, sentou-se no sofá com as mãos nos bolsos do casaco. Howard fechou a porta do quarto do filho. Colocou a cafeteira para funcionar e então encontrou uma caixa vazia. Tinha pensado em recolher algumas das coisas do menino que estavam espalhadas pela sala de estar. Mas preferiu sentar-se ao lado dela no sofá, empurrou a caixa para o canto e inclinou-se para a frente, com os braços entre os joelhos. Começou a chorar. Ela puxou sua cabeça sobre o colo e deu tapinhas em seu ombro. "Ele se foi", consolou-o Ann. Continuou dando tapinhas no ombro dele. Em meio a seus soluços, conseguia ouvir a cafeteira assobiar na cozinha. "Passou, passou", disse ela carinhosamente. "Howard, ele se foi. Ele se foi e agora teremos que nos acostumar a isso. A estar sozinhos."
Depois de um tempo, Howard levantou-se e começou a andar aleatoriamente pelo quarto com a caixa, sem colocar nada dentro, apenas amontoando algumas coisas do lado do sofá. Ela continuava sentada com as mãos nos bolsos do casaco. Howard pôs a caixa no chão e trouxe o café para a sala de estar. Mais tarde, Ann ligou para alguns parentes. Depois que cada chamada tinha sido completada e o outro lado respondido, Ann deixava escapar algumas palavras e chorava por um minuto. Então explicava calmamente, com voz medida, o que tinha acontecido e lhes falava sobre os procedimentos. Howard levou a caixa para a garagem, onde viu a bicicleta do filho. Deixou cair a caixa e sentou-se no chão de cimento ao lado da bicicleta. Levantou a bicicleta desajeitadamente, de modo que ela encostava no seu tórax. Abraçou-a. O pedal de borracha entrava no seu peito. Girou a roda para a frente.
Ann desligou o telefone assim que falou com sua irmã. Procurava por outro número quando o telefone tocou. Atendeu no primeiro toque.
"Alô", disse ela, e ouviu alguma coisa ao fundo, um som ruidoso. "Alô!", repetiu. "Pelo amor de Deus", exclamou. "Quem é? O quê que você quer?"
"Seu Scotty, deixei-o pronto para você", a voz de homem disse. "Você se esqueceu dele?"
"Seu crápula!", gritou pelo receptor. "Como você pode fazer isso, seu filho da puta perverso?". "Scotty", o homem disse. "Você se esqueceu do Scotty?" Então, desligou na cara dela.
Howard ouviu o grito e entrou, vendo-a com a cabeça sobre os braços em cima da mesa, chorando. Pegou o telefone e ouviu o tom de discagem.
Bem depois, logo antes da meia-noite, depois de eles terem lidado com muitas coisas, o telefone tocou de novo. "Você atende", avisou ela. "Howard, é ele, eu sei." Estavam sentados na mesa da cozinha com o café à sua frente. Howard tinha um pequeno copo de uísque ao lado de sua xícara. Atendeu no terceiro toque.
"Alô. Quem é? Alô! Alô!" A linha caiu. "Desligou", disse Howard. "Quem quer que fosse.
"Era ele", afirmou Ann. "Esse cretino. Eu queria matá-lo," prosseguia ela. "Eu queria dar um tiro nele e vê-lo agonizar".
Meu Deus, Ann”, disse Howard.
"Você conseguiu ouvir alguma coisa?", perguntou Ann. "Ao fundo? Um barulho, máquinas, alguma coisa batendo?"
"Nada mesmo. Nada do tipo", respondeu ele. "Não deu tempo. Acho que tinha alguma música na rádio. Sim, tinha um rádio tocando, é só isso que consegui notar. Eu não sei o que está acontecendo; Meu Deus!" ele disse.
Ela balançou a cabeça. "Ah, se eu pudesse, se eu pudesse colocar as minhas mãos nele." Então tudo veio à tona. Ela sabia quem era. Scotty, o bolo, o número de telefone. Empurrou a cadeira pra longe da mesa e levantou-se. "Me leve para o centro", ela ordenou. "Howard?"
"Pera, o que você disse?"
"O centro. Eu sei quem é que está ligando. Eu sei quem é. É o padeiro, o filho de uma cadela adeiro, Howard. Pedi que ele fizesse um bolo para o aniversário do Scotty. É ele quem está ligando. Ele é quem tem o número e fica ligando para a gente. Para cobrar aquele bolo. O padeiro, aquele cretino."
Foram de carro até o centro. O céu estava limpo e as estrelas se amostravam no céu. Estava frio, ligaram o aquecedor do carro. Estacionaram na frente da padaria. Todas as lojas estavam fechadas, mas havia carros do outro lado do estacionamento em frente ao cinema. As janelas da padaria estavam escuras, mas quando eles olharam através do vidro conseguiram ver uma luz que vinha do quartinho lá atrás e, de vez em quando, um homem de avental saindo e entrando daquela luz branca e uniforme. Pelo vidro, ela viu os expositores e algumas mesinhas com cadeiras. Tentou entrar pela porta. Bateu algumas vezes no vidro. Mas se o padeiro os ouviu, não deu nenhum sinal. Não olhou para eles.
De carro, foram para os fundos da padaria e estacionaram. Saíram do carro. Ali, uma janela iluminada, alta demais para que vissem o lado de dentro. Uma placa perto da porta dos fundos dizia PADARIA ARMAZÉM, PEDIDOS ESPECIAIS. Ela podia ouvir um rádio tocando baixinho lá dentro e a ruidosa porta de um forno (abrindo?). Bateu na porta e esperou. Bateu outra vez, fazendo ainda mais barulho. O rádio baixou e deu lugar a um som de raspagem, o som de alguma coisa, uma gaveta, sendo aberta e depois fechada.
Alguém destrancou a porta e a abriu. O padeiro encarou-os sob aquela luz. "Estamos fechados", avisou ele. "O que vocês querem uma hora dessas? É meia-noite. Vocês estão bêbados ou algo do tipo?"
Ela ficou sob a luz que saía pela porta aberta. Ele piscou seus cílios pesados quando a reconheceu. "É você", ele disse.
"Sou eu", respondeu ela. "Mãe do Scotty. Este é o pai do Scotty. Nós gostaríamos de entrar."
O padeiro falou, "estou ocupado agora. Tenho trabalho a fazer."
Mas ela já tinha passado para dentro da porta. Howard entrou logo atrás dela. O padeiro recuou. "Tem cheiro de padaria aqui dentro. Não tem cheiro de padaria, Howard?"
"O que vocês querem?" o padeiro perguntou. "Talvez você queira seu bolo. É isso, você decidiu que quer seu bolo. Você pediu um bolo, não foi?"
"Você é bem esperto para um padeiro", disse ela. "Howard, esse é o homem que tem ligado para a gente." Cerrou os punhos. Encarou-o ferozmente. Havia um fogo queimando dentro dela, uma raiva que a fez sentir maior do que era, maior do que qualquer um daqueles homens.
"Pera um pouco aí", o padeiro alertou. "Você veio pegar seu bolo de três dias atrás? É isso? Eu não quero discutir com você, senhora. Ali está ele, mofando. Dou pra você por metade do que tinha cobrado. Não. Quer pra você? Pode ficar. Não me serve, já não serve pra ninguém. Custou tempo e dinheiro para fazer esse bolo. Se você o quer, tudo bem, se não, tudo bem também. Eu preciso voltar ao trabalho." Ele olhou para eles e colocou a língua atrás dos dentes.
"Mais bolos", ela pediu. Sabia que estava no controle daquilo, do que crescia dentro dela. E estava calma.
"Senhora, eu trabalho dezesseis horas por dia nesse lugar para ganhar a vida", o padeiro disse. Limpou as mãos em seu avental. "Trabalho dia e noite aqui, tentando sobreviver." Um olhar que perpassou o rosto de Ann fez o padeiro recuar e dizer, "Vai com calma." Foi até o balcão, pegou o rolo de massas com a mão direita e começou a batê-lo contra a palma da outra mão. "Você quer o bolo ou não? Preciso voltar ao trabalho. Os padeiros trabalham à noite", repetiu. Seus olhos eram pequenos, pareciam malignos, ela pensou, quase perdidos na carne cheia de pelos que cobria sua face. Sua garganta era grossa de gordura.
"Eu sei que padeiros trabalham à noite", retrucou Ann. "Fazem ligações à noite, também. Seu cretino".
O padeiro continuava a bater com o rolo em sua mão. Olhou de relance para Howard. "Cuidado, cuidado", disse ele a Howard.
"Meu filho está morto", ela disse com um frio e uniforme desfecho. "Foi atropelado por um carro na manhã de segunda-feira. Estávamos acompanhando-o até a hora em que morreu. Mas, claro, não podemos imaginar que você sabia disso, não é? Os padeiros não sabem de tudo – sabem, Sr. Padeiro? Mas ele está morto. Está morto, seu canalha!" Tão rápido quanto brotou dentro dela, sua raiva despencou, dando lugar a outra coisa, uma tontura nauseante. Inclinou-se sobre a mesa de madeira que estava cheia de farinha de trigo, colocou as mãos no rosto e começou a chorar, com os ombros movendo-se para frente e para trás. "Não é justo", ela disse. "Não é, não é justo."
Howard pôs a mão nas contas de Ann e olhou para o padeiro. "Que vergonha", apontou Howard. "Que vergonha."
O padeiro pôs o rolo no balcão. Desamarrou seu avental e jogou-o ali em cima. Olhou para eles e então balançou a cabeça devagar. Tirou uma cadeira de baixo da mesa de jogos, que continha papéis e recibos, uma calculadora e uma lista telefônica. "Sente-se por favor", pediu ele. "Deixe-me pegar uma cadeira para você", disse a Howard. "Sente-se aí, por favor." O padeiro foi até a parte da frente da loja e voltou com duas pequenas cadeiras de ferro fundido. "Por favor, sentem-se, pessoal."
Ann limpou os olhos e virou-se para o padeiro. "Eu queria matar você", contou. "Queria ver você morto." O padeiro limpou uma parte da mesa para eles. Colocou a calculadora de lado, junto com as pilhas de papéis de nota e recibos. Jogou a lista telefônica no chão, que aterrissou com um barulho. Howard e Ann sentaram e puxaram suas cadeiras para mais perto da mesa. O padeiro também se sentou.
"Deixem-me dizer o quanto estou arrependido", dizia o padeiro, apoiando os cotovelos na mesa. "Só Deus sabe o quanto. Escutem. Sou apenas um padeiro. Não quero ser qualquer outra coisa. Talvez um dia, talvez anos atrás, eu era um tipo diferente de ser humano. Esqueci. Não sei ao certo. Mas não sou mais, se é que um dia fui. Agora sou apenas um padeiro. Isso não retira o que fiz, eu sei. Mas estou profundamente arrependido. Sinto muito pelo seu filho, sinto muito pela minha parte nisso", o padeiro disse. Abriu suas mãos sobre a mesa e virou-as para revelar as palmas. "Não tenho filhos, eu, então só consigo imaginar o que vocês estão sentindo. Tudo que posso fazer agora é pedir desculpas. Perdoem-me se puderem", suplicava o padeiro. "Não sou um homem mau, eu acho. Não sou perverso, como você disse no telefone. Você precisa entender que tudo se resume ao fato de que, ao que parece, não sei mais lidar com pessoas. Por favor", o homem dizia, "posso perguntar se vocês conseguem encontrar perdão para mim nos seus corações?"
Estava quentinho na padaria. Howard levantou-se da mesa e tirou o casaco. Ajudou Ann a tirar o seu. O padeiro fitou-os por um minuto, assentiu e levantou-se da mesa. Foi até o forno e desligou alguns botões. Pegou copos e serviu café em uma cafeteira elétrica. Colocou uma caixinha de creme na mesa e um pote de açúcar.
"Acho que você precisa comer alguma coisa", disse o padeiro. "Espero que comam alguns dos meus bolinhos de rolo. Vocês precisam comer e continuar. Comer é uma coisinha boa em tempos como esse."
Ele os serviu rolos de canela saídos do forno, com a cobertura ainda rala. Colocou manteiga na mesa e facas para passar a manteiga. Então o padeiro sentou à mesa com eles. Esperou. Esperou até que cada um pegasse um bolinho da bandeja e começou a comer. "Faz bem comer", disse ele, prestando atenção nos outros. "Tem mais. Comam mais. Comam tudo que puderem. Tem todos os bolinhos do mundo aqui."
Comeram os bolos e beberam café. Ann estava de repente com fome, e os bolos estavam quentinhos e doces. Comeu três deles, o que deixou o padeiro alegre. Então ele começou a falar. Escutaram com atenção. Embora estivessem cansados e angustiados, escutaram o que o padeiro tinha a dizer. Concordavam enquanto o padeiro falava de solidão e da sensação de dúvida e limitação que surgiram quando era mais jovem. Contou-lhes como era não ter tido filhos por todo esses anos. Repetir os dias com os fornos para sempre cheios e para sempre vazios. As comidas de festa, as celebrações em que ele tinha trabalhado. Cobertura que chegava ao calcanhar. Os pequeninos casais que fincou nos bolos. Centenas deles. Não, milhares agora. Aniversários. Imagine todas aquelas velas queimando. Era um labor necessário. Ele era padeiro. Estava contente por não ser um florista. Era melhor alimentar as pessoas. Cheirava melhor que flores em qualquer ocasião.
"Sinta o cheiro", o padeiro disse, abrindo um pedaço de pão escuro. "É um pão pesado, mas muito saboroso." Cheiraram-no, então ele fez com que provassem. Tinha cheiro de melaço e grãos grossos. Eles o escutaram. Comeram o que puderam. Engoliram o escuro pão. Parecia dia debaixo daqueles raios de luz fluorescente. Continuaram conversando até de manhã cedo. A luz pálida raiava para o alto nas janelas. E nem pensavam em ir embora.


-1983-




Ps.: This translation doesn't intend to make any profit. All rights for the original text are reserved to the author.
Obs.: Essa tradução não pretende o lucro. Todos os direitos da obra original estão reservados ao autor.

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