sábado, 18 de novembro de 2017

A Bruxa Velha (Tradução de The Ole Higue)

TEMPORADA DE MANGA EM GEORGETOWN, GUIANA

Em uma manhã ensolarada de Sábado, eu não deveria estar correndo atrás de uma bola de críquete no quintal do vizinho. Isso acontece quando se tem um irmãozinho como o Sammy. Ele é mais chato que um mosquito macho.
"Você faz de propósito!" Queria encher ele de porrada. "A vovó diz que a Dona Withers é uma Bruxa Velha. Ela sugou o sangue do marido dela até ele morrer. E vai sugar o seu também!"
"O papai diz que é mentira", disse Sammy. "A Bruxa Velha é história de gente velha. Pra assustar as criancinhas."
"É mesmo? Então continua mexendo com a Dona Withers. Tu vai saber se é verdade ou não".
Caminho até a casa da Bruxa Velha, que fica na esquina. O Sammy fica pra trás.
"Tenho mais o que fazer em vez de procurar essa sua bola de críquete idiota".
"Tipo beijar aquele garoto alto que vive rindo?”
Virei pra ele e encarei. "me vigiando agora, é?"
Passamos pela cerca de um metro e meio, cheia de hibiscos vermelhos. Ninguém usa aquele portão trancado com cadeado que dá para a escadaria da frente, destruída por sol e chuva. Chegamos do lado da casa. Uma corrente grossa protegia o portão de ferro fundido que, corroído, dava passagem para a entrada da garagem. O carro funerário da Bruxa Velha esperava sob a casa. A casa branca acinzentada de madeira ao estilo colonial crescia à nossa frente. Edificava-se sobre oito colunas robustas de 3 metros como uma grande viúva-negra. Cortinas negras sequestravam os raios de sol que tocam os vidros das janelas.
Fui em direção ao portão pequeno que ficava à direita. O Sammy puxou minha saia e ficou grudado em mim. Toquei o sino enferrujado. A cabeça de um homem jovem, o neto da Bruxa Velha, aparece em uma janela acima de nós. Seu cabelo negro oleoso brilhava à luz do sol.
"O quê que vocês quer?"
"A bola de críquete do meu irmão caiu no seu quintal. A gente pode entrar e pegar?"
A cabeça da Bruxa Velha surgiu em outra janela. Seu cabelo preto trançado se arrastava pelo parapeito da janela. Senti um espasmo vindo do Sammy. "Num sou burra, não. Teu irmão magrelo quer é pegar minhas manga mangas." Os olhos negros na carne fraca do rosto pareciam jogar bolas de fogo no Sammy. Ele segurou minha mão e se colou em mim.
"Dona Withers, seu neto pode pegar pra gente, então?"
"Deixa eu te falar, garota. no meu quintal é meu. Manda teu irmão olhudo parar de jogar as coisa coisas pro meu quintal". A Bruxa Velha e seu neto desapareceram para dentro da barriga da viúva-negra.
"Não me olha com essa cara amarrada. Eu prometi que ia tentar, não que ia pegar a tua bola."
Voltamos para casa. Já conseguia prever que o Sammy iria aprontar. Empurrei-o pelas costas devagar. "Sammy, nada de aprontar! me ouvindo? Ou a Bruxa Velha vem sugar o teu sangue". Abri nosso portão. Ele saiu varado pelo quintal como se os dois Dobermans pretos do senhorio estivessem atrás dele. Cacau latiu de dentro da casinha que ficava na escadaria da frente. Era um cachorro grande, esguio, marrom-cacau, de raça mista. Pertencia à família que morava no apartamento de baixo. Desde que atacou o carteiro, Cacau ficava preso durante o dia.
Inspirei profundamente e expirei. Odeio ter que falar com a Dona Withers. Sinto formigas descendo pelas minhas costas. Ela nos amaldiçoou desde o dia em que nos mudamos para a vizinhança. Nosso moderno condomínio rosa e branco de alvenaria deve ser uma afronta para ela. Tudo que cai no seu quintal se perde para sempre. O papai não aproveita seus churrascos das noites de sábado com os amigos. Ela chama a polícia reclamando sobre o barulho.
Sem o Sammy, a Bruxa Velha nem saberia que eu existo. Ele estava sempre perdendo as coisas no quintal dela. A mangueira o atraía para lá. Da janela do nosso andar de cima ele contava as frutas vermelho-alaranjadas balançando nos galhos. Não é fácil para uma garota de dezesseis anos como eu lidar com um garoto de sete anos. Ele revela o que há de pior em mim. A vovó diz que eu tenho rosto de anjo e coração de demônio.
"Ele é um artista danado", a mamãe disse para a senhoria um dia desses. O Sammy tinha conseguido quebrar o vaso de cristal da senhoria. Ela o guardava na mesinha de cabeceira da sala de estar. O Sammy vai frequentemente à casa deles. Joga videogame com filho dela. "A Zina nunca me deu trabalho quando era pequena", a mamãe dizia. "Não tenho mais disposição para acompanhar o menino".
A mamãe  acredita que eu tenho essa disposição para lidar com o Sammy. Além de procurar e pegar ele, faço ele tomar banho, comer sua comida, fazer a tarefa de casa e escovar os dentes. Agora  sou o Optimus Prime. Não via a hora de dar uma hora. Mamãe e papai chegariam do trabalho. Sábado à tarde é minha folga. É meu momento com os amigos. Nenhum Megatron. Nenhuma Bruxa Velha para sugar minhas energias.
******
Era sábado à noite, já passava das oito. Estava na sala de estudos conversando com minhas amigas online. Sammy estava na sala jogando seu Playstation 2. Lutava contra os Decepticons no Planeta Cybertron. Não me perguntem o que ele vê nesses jogos bobos de Transformers. Mas o jogo o mantém quieto por meia hora. Já o filme, é outra coisa. É ação toda hora. E o ator principal é muito fofo.
A mamãe apareceu no vão da porta. Estava usando seu vestido vermelho purpurinado, colado e com alças delicadas. Linda e  curvilínea. Prometeu que me deixaria usar seu vestido no aniversário da minha melhor amiga. Mamãe e papai iriam ao hotel Pegasus Poolside para um aniversário de casamento com alguns amigos. Ar livre, luz de velas, churrasco e música ao vivo. E eu, presa em casa. Servindo de babá para o Sammy.
"Zina, não quero você e Sammy brigando de novo", disse a mamãe. " me ouvindo, Sammy? Nada de brigas!"
"Ela que começa, mãe."
"Sammy!" disse o papai da sala de estar. "É pra escutar sua irmã."
"Tá boooom, pai. Vou me comportar."
Fui com mamãe e papai até a porta da frente. Depois que eles saíram, tranquei a porta. Hora de se manter seguro. Nenhum ladrão iria entrar. Fechei e passei a tranca nas janelas da sala de visitas. Antes de fechar a janela da sala de jantar, dei uma olhada na casa da Bruxa Velha. Consegui ver uma luz em um dos quartos. A mangueira montava guarda à sombra das luzes da rua. Desliguei todas as lâmpadas fluorescentes. Verifiquei todos os trincos da porta dos fundos. As janelinhas da cozinha e do banheiro estavam trancadas. Saí da sala sob a luz do abajur.
O Sammy ainda estava em pé de guerra com Megatron. Tuhtuh-tuhtuh-tuhtuh. O som do canhão que sai do braço do Megatron ecoa por todas os cômodos. O Sammy e eu dividimos o quarto da frente, perto da sala com formato de L. Nossa sala de estudos ocupa o quarto do meio. De lá saímos para a sala de jantar. Mamãe e papai dormem no quarto de trás, perto do banheiro e da cozinha.
Sentei no computador novamente. O Fórum Guianense estava à minha espera. Ontem, o CoraçãoPartido reclamou que não conseguia encontrar uma garota de boa personalidade. O AçúcarMascavo respondeu: "Talvez você esteja procurando nos lugares errados". Registrada como CarinhaDeAnjo, comentei: "Meu problema é parecido. Os garotos da minha turma são muito chatos e infantis".
Mais de meia hora se passou e eu notei os sons repetidos de "Game Over". A sala de estar estava em trevas. O Sammy estava aprontando de novo. Fui de fininho até a porta aberta e saltei pra fora. Não conseguia ver o Sammy. Dei uma olhadela por cima da mureta de metro e meio entre as salas de estar e de jantar. O Sammy estava de pé,  perto da mureta. Escondida, cheguei bem atrás dele.
"O que tu tá fazendo, Sammy?" Ele deu um pulo para trás e quase me bateu.
Ele se virou em um instante para mim. Estava escondendo alguma coisa na mão esquerda. "Num Não tô fazendo nada. só olhando na janela".
"Deixa eu ver tua mão". Ele abriu as mãos, revelando um monte de bolinhas brancas do tamanho de pitombas da Guiana. Tomei da mão dele. "Estão molhadas! O que é isso?"
"É só papel higiênico".
"Tu fica molhando papel higiênico e fazendo bolinha? Sammy? O que tu aprontando?"
"Nada. fazendo nada".
Me inclinei para fora da janela. A luz que vinha do andar de baixo iluminava  o quintal. Não vi nenhuma bola de papel. Deixei a cortina se fechar e me virei para o Sammy. "Não me diz que tu jogou as bolinhas  no quintal da Bruxa Velha!"
"Ela pegou minha bola de críquete".
"Então tu acha certo sujar o quintal dela com papel higiênico?"
"Não". Sammy olhava para o chão.
"A Bruxa Velha deveria sugar todo o teu sangue".
"Num Não tenho medo da Bruxa Velha. Ela nunca vai me pegar."
"É? Quem foi que se se escondeu debaixo da minha saia hoje de manhã?”
"Não conte pra mamãe e pro papai."
"Se tu for pra cama agora, num não vou contar."
Sammy escovou os dentes e vestiu seu pijama. Acomodou-se na cama de baixo do beliche. "Tu promete não contar?"
"Sim, prometo. Agora vai dormir."
O Sammy abraçou seu sapo de pelúcia, colocou o dedão na boca e apagou como uma lâmpada. Queria dormir assim tão rápido. Antes de desligar, meu cérebro processa tudo que aconteceu durante o dia.
******
Sábado de manhã, acordei umas oito. Desci do beliche. O Sammy ainda estava dormindo. Abri a porta do quarto e fui ao banheiro. Quando voltei, arrumei a cama. O Sammy rolou,  revelando uma mancha de sangue no seu travesseiro.
"Sammy". Sacodi até que ele acordasse. "O que aconteceu, Sammy? Tem sangue no teu travesseiro. Tu se cortou?"
"Sangue?" O Sammy se sentou na cama, passando a mão nos olhos. "Onde?" E se virou para mim. "O que tu tá olhando?"
"Tem sangue no teu pijama também!"
O Sammy olhou para a mancha no travesseiro. Sentei na cama dele e examinei sua face, boca e pescoço. Encontrei uma pequena marca vermelha do lado direito do pescoço. Parecia uma picada de mosquito. Desabotoei seu pijama. Nenhuma marca no peito ou costas. Levantei e fui para o quarto da mamãe. Bati na porta.
"Mãe... Pai... alguma coisa aconteceu com o Sammy. Tem sangue no pijama dele e no travesseiro".
A mamãe apareceu. Abotoou  a roupinha de casa. Segui ela até nosso quarto. O Sammy ainda estava sentado na cama com  o dedo na boca. Mamãe olhou o Sammy, o travesseiro e os lençóis. Tocou a pequenina mancha de sangue no seu pescoço. "Zina, tem certeza de que você e o Sammy não brigaram ontem à noite?"
"Não, mãe!". A senhora acha que eu ia mentir sobre uma coisa dessas? Ele ficou acordado até às 9 em ponto e eu coloquei ele pra dormir."
A mamãe voltou para o quarto para acordar o papai.
"Deve ter sido um morcego-vampiro," disse o papai. Passou o dedo pela marca no pescoço do Sammy. "Mosquito não deixa marca de sangue assim".
"Mas as janelas e a porta do quarto estavam fechadas," disse a mamãe.
"Então ele só pode ter se escondido em algum lugar desse quarto," disse o papai.
"Sammy, vai deitar no sofá enquanto procuramos no seu quarto," disse a mamãe.
O Sammy saiu do quarto, acariciando seu sapinho verde. Nem parecia o Sammy, assim fazendo o que mandam sem responder.
"Zina, você fica e ajuda," disse a mamãe.
"Eca", fiz uma careta. "Odeio morcegos".
"Me ajuda a tirar os lençóis," ela disse.
Tiramos os lençóis e as fronhas. Sacudimos tudo. O papai procurou sob os colchões. Tirei nossos sapatos de baixo da cama e bati com eles no chão. Ainda bem! Nenhum morcego-vampiro debaixo da cama.
Papai abriu nosso guarda-roupa. Como sempre, o Sammy deixou a porta semiaberta. Mamãe tirou os cabides com as nossas roupas, uma por uma. Coloquei na minha cama. O papai remexia o guarda-roupa vazio. Afastou-o da parede e inspecionou lá atrás. Nada do morcego-vampiro.
"Zina, pega a escadinha", pediu o papai. Não conseguia ver morcego nenhum do topo da escada.
A gaveta de baixo da nossa cômoda estava aberta. Era a gaveta do Sammy – onde ele esconde as porcarias dele. Enquanto o papai tirava as quatro gavetas, fui para a porta, pronta para sair correndo. Não queria nenhum morcego batendo na minha cara. Encontrei o Sammy perto da porta. A mamãe procurava nas roupas em cada gaveta. Papai procurava na cômoda sem gavetas. Nenhum morcego nojento. Puxou a gaveta da parede, mas não tinha nada preso lá atrás.
Nosso quarto estava uma bagunça. A mamãe sentou na cama do Sammy. O papai ficou no meio do quarto. Sammy e eu ficamos no vão da porta.
"Não tô entendendo", mamãe disse para o papai. "Se não é um morcego-vampiro, por que esse sangue?"
Segurei a mão do Sammy e o puxei para a cozinha. "Sammy, se tu não se cortou, se um morcego-vampiro não te mordeu, então só pode ser..."
"A Bruxa Velha", disse o Sammy com um sussurro. "Não fala pra mamãe e pro papai sobre as bolinhas de papel. Tu prometeu. Vou ficar sem videogame de novo".
"O que a gente vai fazer agora?", perguntei.
"Vamo ligar pra vovó e perguntar."   
"Não, ela vai querer saber o que aconteceu. Vamo pesquisar na internet".
"O que vocês tão sussurrando aí?" Sammy deu um pulo quando ouviu a voz da mamãe.
"Só dizendo pro Sammy que ele tem que me ajudar a arrumar o quarto."
"Boa ideia", disse a mamãe. "Zina, quando trocar essa sua roupa de dormir, vem me ajudar a fazer o café".
"Vem, Sammy", disse o papai. "Vamo ver se não tem outra mordida por aí".
Depois do café, mamãe lavou a louça. O Sammy me ajudou a arrumar o quarto. Depois, no quarto de estudo, ele sentou à minha esquerda na frente do computador. Digitei no Google: "Bruxa Velha".
O Sammy não se aquietava na cadeira. "Achou alguma coisa?"
"O Dicionário de Inglês da Jamaica diz que a Bruxa Velha é uma bruxa que pode sair da sua pele e voar à noite para sugar o sangue das pessoas, principalmente bebês."
"O que eles dizem pra gente fazer pra impedir a Bruxa Velha de sugar meu sangue?"
"Só fala aqui de uma cruz azul pra usar no nono dia depois que um bebê nasce. Não vai funcionar pra ti".
"O que mais diz aí?"
"Deixa eu ver". Cliquei no link do Dicionário de Inglês Caribenho em Uso.
"O que diz?", o Sammy se esticou para a frente, apertando os olhos pertinho da tela "A letra é muito fina pra ler".
"No interior, algumas superstições fetiches ainda são mantidas para afastar a Bruxa Velha".
"O que é 'superstições fetiches'?"
"Deve ser as coisas que protege da Bruxa Velha..." Continuei em voz alta: "Podem-se colocar protetores em volta do pescoço da criança, uma flor um cubo de azul pendurada acima da porta ou marcas de giz feitas nas escadas."
"Posso pegar giz lá embaixo, no Charlie," disse o Sammy.
"Olha, Sammy, eles mencionam a Guiana. 'Existe uma lenda popular na Guiana sobre um espírito maligno que sai de sua pele e transforma-se em uma bola de fogo, ou algo parecido, e então suga o sangue dos vivos’".
"Como que ela vira uma bola de fogo?!", o Sammy perguntou.
"Como é que eu vou saber? Te aquieta, deixa eu ler... No dia 28 de Abril de 2007, um grupo de moradores do campo em Bare Root, Costa Leste do Demerara, espancou uma mulher até a morte. Achavam que era  uma Bruxa Velha. Jogaram arroz em volta dela".
"A mamãe tá cheia de arroz. Ela não vai nem perceber," disse o Sammy. "Aí diz onde tem que botar o arroz?"
"Sim, tem que colocar um bocado de arroz cru perto do pé da cama. Aí a Bruxa Velha vai contar os grãos de arroz. Quando ela tiver contando o arroz, a gente sai da cama de mansinho e chama o papai."
"Aí o papai bate nela com a vassoura de palha", disse o Sammy.
******
Manhã de domingo. Papai e mamãe assistiam TV. Sammy e eu estávamos na varanda  lá de trás. Fizemos uma linha com giz no chão da porta dos fundos. Fizemos outra linha no chão da porta da frente. Para proteção extra, desenhamos uma cruz bem grande em cada porta.
Na hora de dormir, depois que o papai desligou todas as luzes, Sammy e eu voltamos ao trabalho. Com a luz da lanterna do Sammy, colocamos montinhos de arroz em cada pé da cama. Subi na cama de cima.
"Tu pode dormir na minha cama hoje?", disse o Sammy.
Que bom que ele pediu. Não queria dormir sozinha. Peguei meu travesseiro e deitei com ele na cama de baixo. Sammy me cobriu com seu lençol. Escondi a lanterna debaixo do meu travesseiro. O Sammy se aconchegou sob meu braço esquerdo como fazia quando era bebê. Apertei ele no meu peito. Nenhuma Bruxa Velha iria sugar o sangue do meu irmão.
"O que a gente vai fazer se as linhas de giz e o arroz não funcionarem?", perguntou o Sammy.
"Vou ficar acordada e começar a gritar quando eu ver ela."
Meu irmão tentava ficar acordado comigo. Mas em meia hora ele caiu no sono. Eu continuava de guarda naquele quarto sombrio. Meu corpo contraía até com o menor ruído. Homens andavam pela rua. O Cacau latia lá do portão da frente. Eles o xingaram. Os Dobermans do senhorio latiam e rosnavam. Um gato silvava. O Cacau correu para as escadas da frente. Toda noite ele deitava na frente da porta. A mamãe sempre reclamava do fedor de cachorro no pátio. Ela já pediu milhões de vezes para o papai colocar um portão no topo da escada para o cachorro não entrar. Acho que lá dava para o Cacau ver direitinho o nosso quintal. De acordo com o Sammy: "Ele sente o cheiro melhor lá no alto." Não me ligo nessas coisas. Mas era bom saber que o Cacau estava de guarda. Ele latiria quando a Bruxa Velha aparecesse. Iria arrancar um pedaço dela como ele fez com o carteiro.
O Cacau latia. Meu cérebro acordou. Já era mais de meia noite. Devia ter cochilado. Uma manga caiu da árvore da Bruxa Velha. Abracei meu irmão. O Cacau rosnou. Meus músculos se contraíram. Apertei o Sammy mais forte. Tirei a lanterna debaixo do travesseiro. Apertei o botão de ligar e apontei a luz por todo o quarto. O Cacau deu um gemido. Silêncio. Esperei. Meu corpo estava muito rígido, não conseguia me mover. Tudo estava quieto. O Cacau parecia ter dormido. Eu deveria dormir também. Escutei o ritmo lento da respiração do Sammy. Senti um aperto de leve contra o meu peito. É a última coisa de que lembro. O sono me venceu; me levou para a barriga da viúva-negra.
Manhã de segunda. Fim de semana acabou. Agora era voltar para a escola. A Bruxa Velha não estava no nosso quarto contando os grãos de arroz. Não tinha sangue no pescoço do Sammy, no pijama ou no travesseiro. A Bruxa Velha não poderia se aproximar de nós. Estávamos a salvo.
"As marcas de giz funcionam", exclamou o Sammy. "É verdade o que eles dizem: a Bruxa Velha não pode passar pela marca de giz."
Sammy e eu nos aprontamos para a escola e tomamos café. Ajudei o Sammy a arrumar a mochila. A mamãe sentou na frente do espelho para se maquiar.
"Se vocês quiserem carona pra escola, é melhor se arrumar logo," disse o papai. "Vou lá em baixo dar uma esquentada no velho Ford." Papai abriu a porta da frente. "Zina! Sammy! Vem aqui, rápido!".
Congelei. Sammy e eu encaramos um ao outro. Sammy correu para a porta da frente. Segui.
O papai ficou na porta. "Quem ia fazer um negócio desses?"
Alguém tinha movido o tapete de boas-vindas para o centro da varanda. O Cacau estava em cima do tapete. Sua cabeça, sobre uma poça de sangue. Bolinhas de papel higiênico adornavam sua silhueta morta como um cadáver preparado para a fogueira.
Estendi minha mão e apertei, bem forte, a do Sammy.



Tradução de The Ole Higue, de Rosaliene Bacchus, disponível em: http://www.guyanajournal.com/Ole_Higue.html

Confira outros contos e muita coisa interessante no blog da autora: http://www.rosalienebacchus.com/writer/ShortStories.html
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domingo, 5 de novembro de 2017

Guardado

Passou o tempo do desespero esperançoso
Das noites que vivi inteiras no meu quarto
Assistindo a responsabilidade dos teus sapatos
Na minha tevê grande e cheia de cores.
Como o souvenir de um vôo de amores,
Guardo aquilo que não digo
Com todas suas estampas-memórias
- Poemas, mercado, colchão: histórias -
No fundo do guarda-roupa cotidiano
Mas que você fique sabendo, que
Mesmo sem vestir camisa, eu amo

Hoje à noite

Hoje à noite eu morreria feliz
Morreria porque tua pupila
expandia enquanto me olhavas
E só por achar que tu me vias
Eu sorriria 
no último chão

Mas não posso morrer hoje à noite, não
Ninguém cuidaria melhor
das borboletas no meu estômago
E dos bichos da minha razão
que ainda nem destroem as plantas do nosso lar

Nego os perigosos veículos alheios 
de atravessar minha frente
- só te vejo -
Impeço os raios
que se atraiam por minha cabeça
- mas tu podes -
Rejeito que os choques
corram por meu corpo
- é ofício das tuas mãos -
Proíbo as balas perdidas
de se abrigarem no meu peito
- não cabe mais que você

E negando 
não morrerei
hoje à noite
Porque os melhores beijos
podem vir pela manhã