terça-feira, 9 de outubro de 2018

[CONTO] Fede

Autor desconhecido. Disponível em: http://www.jay-young.com.tw/html/front/bin/ptdetail.phtml?Part=news20160224&Rcg=110187


Hoje acordei tarde, cansado, os vizinhos do lado direito conversavam alto e o mundo cheirava a carniça. Era um odor agudo e intrometido. Algo morreu aqui perto, pensei. Tomei banho e escovei os dentes sem me preocupar e saí para assistir a uma palestra. Dirigia com as janelas abertas, como sempre de manhã, quando um vento malcheiroso invadiu o carro. Que horror de visita, nem pude fingir que estava dormindo. Um animal morreu naquele lugar, pensei. Um animal. Mas meu incômodo parecia vir do carro que eu ultrapassara. Estranho.

Cheguei à universidade e algo lá também fedia. Me perguntava como podiam ter morrido tantos animais e com carnes tão parecidas ao meu faro. Estranhando a coincidência, reduzi a velocidade e procurei pelos possíveis sinais de morte pelo chão. E nada aqui à esquerda, nada à frente ou atrás, nada além da maldita sensação salgada da carniça nas minhas narinas. Soprei na mão e nada. Nas axilas, além da essência de ser humano, nada.  Cheirei o casaco, o avesso da camisa e a calça que estava usando pela primeira vez na semana. Nada. Chequei as solas dos sapatos e, pelo amor de deus, não tinha nada.  Olhava para todos os cantos e não encontrava a origem daquilo. Em desespero, até a minha cueca esteve sob suspeita. Teria vestido uma suja? Pouco provável. Cogitei até cortar um pedaço do meu cabelo para me certificar que não era de mim que exalava a podridão. Poderia vir da guarita... nessa hora meus pensamentos foram interrompidos pela chegada ao local da palestra. Antes de entrar no auditório, passei por uma fila e senti novamente aquele fedor. Não podia ser verdade. Me senti seguido, vigiado. E por um cheiro insuportável.

Mas precisava seguir para o auditório e meu interesse mudou de foco. Com a excelente argumentação da mesa, esqueci a preocupação olfativa, mesmo que por tempo insuficiente para me livrar da paranoia.  Ao final das falas, abracei rapidamente um colega e, em seguida, um amigo de longa data. Revelou-se novamente o vento fétido, agora nos seus hálitos. Era perseguição, espiritual, ilusório. Eu tinha certeza. Um bafo jamais poderia ser tão desagradável.  Tive medo de surtar quando senti emanar de suas bocas a minha loucura. Corri para o banheiro em um ato assustado. Senti aquela mesma inhaca no banheiro, saía dos sanitários e das pias e dos buracos das lâmpadas. Me incomodavam, se não bastasse, as muitas vozes na sala ao lado falando sobre a morte da democracia. Lavei os ouvidos e lavei minhas mãos. Só então, em um ataque brutal de consciência, foi que lavei o nariz. O nariz! Espirros e mais espirros iam me afastando a demência. O odor parecia bater em retirada devagar por onde entrou e os pelos do meu corpo já descansavam. Saí do banheiro olhando para as poucas e boas pessoas no salão, muitos amigos, e percebi novos sabores no ar. Indícios de perfumes, colônias, hidratantes, sabonetes, cremes de pentear e felicidade. Um alívio que aproveitei e inspirei o quanto pude, pois sei que aquele cheiro de morte não se acabou. Sei que outros ainda o sentem e que não posso evitá-lo por muito tempo. Por isso, não consigo parar de pensar: que jeito mais estranho de melhorar o mundo, não é?

Cheguei em casa respirando melhor. Mas senti o cheiro de alguma coisa. Algo morreu aqui perto, pensei. Resignado, ri, com o fedor entrando pela minha porta trancada.

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