Autor desconhecido. Disponível em: http://www.jay-young.com.tw/html/front/bin/ptdetail.phtml?Part=news20160224&Rcg=110187
Hoje acordei tarde, cansado, os vizinhos do lado direito conversavam alto e o mundo cheirava a carniça. Era um odor agudo e intrometido. Algo morreu aqui perto, pensei. Tomei banho e escovei os dentes sem me preocupar e saí para assistir a uma palestra. Dirigia com as janelas abertas, como sempre de manhã, quando um vento malcheiroso invadiu o carro. Que horror de visita, nem pude fingir que estava dormindo. Um animal morreu naquele lugar, pensei. Um animal. Mas meu incômodo parecia vir do carro que eu ultrapassara. Estranho.
Cheguei à universidade e algo lá também fedia. Me perguntava
como podiam ter morrido tantos animais e com carnes tão parecidas ao meu faro.
Estranhando a coincidência, reduzi a velocidade e procurei pelos possíveis
sinais de morte pelo chão. E nada aqui à esquerda, nada à frente ou atrás, nada
além da maldita sensação salgada da carniça nas minhas narinas. Soprei na mão e
nada. Nas axilas, além da essência de ser humano, nada. Cheirei o casaco, o avesso da camisa e a
calça que estava usando pela primeira vez na semana. Nada. Chequei as solas dos
sapatos e, pelo amor de deus, não tinha nada.
Olhava para todos os cantos e não encontrava a origem daquilo. Em
desespero, até a minha cueca esteve sob suspeita. Teria vestido uma suja? Pouco
provável. Cogitei até cortar um pedaço do meu cabelo para me certificar que não
era de mim que exalava a podridão. Poderia vir da guarita... nessa hora meus
pensamentos foram interrompidos pela chegada ao local da palestra. Antes de
entrar no auditório, passei por uma fila e senti novamente aquele fedor. Não
podia ser verdade. Me senti seguido, vigiado. E por um cheiro insuportável.
Mas precisava seguir para o auditório e meu interesse mudou
de foco. Com a excelente argumentação da mesa, esqueci a preocupação olfativa,
mesmo que por tempo insuficiente para me livrar da paranoia. Ao final das falas, abracei rapidamente um
colega e, em seguida, um amigo de longa data. Revelou-se novamente o vento
fétido, agora nos seus hálitos. Era perseguição, espiritual, ilusório. Eu tinha
certeza. Um bafo jamais poderia ser tão desagradável. Tive medo de surtar quando senti emanar de
suas bocas a minha loucura. Corri para o banheiro em um ato assustado. Senti
aquela mesma inhaca no banheiro, saía dos sanitários e das pias e dos buracos
das lâmpadas. Me incomodavam, se não bastasse, as muitas vozes na sala ao lado
falando sobre a morte da democracia. Lavei os ouvidos e lavei minhas mãos. Só então,
em um ataque brutal de consciência, foi que lavei o nariz. O nariz! Espirros e
mais espirros iam me afastando a demência. O odor parecia bater em retirada
devagar por onde entrou e os pelos do meu corpo já descansavam. Saí do banheiro
olhando para as poucas e boas pessoas no salão, muitos amigos, e percebi novos
sabores no ar. Indícios de perfumes, colônias, hidratantes, sabonetes, cremes
de pentear e felicidade. Um alívio que aproveitei e inspirei o quanto pude,
pois sei que aquele cheiro de morte não se acabou. Sei que outros ainda o
sentem e que não posso evitá-lo por muito tempo. Por isso, não consigo parar de
pensar: que jeito mais estranho de melhorar o mundo, não é?
Cheguei em casa respirando melhor. Mas senti o cheiro de
alguma coisa. Algo morreu aqui perto, pensei. Resignado, ri, com o fedor
entrando pela minha porta trancada.