sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Caminho

Meu olho dança por tua silhueta e fita
É linda
                                                            É linda
           É linda
Move-se etéreo pela tua consciência
É licença
É licença
É licença
Correm-lhe o busto, estacionam na razão
É lição
É lição
É lição

Garantem-me as várias, as tuas, verdades
É livre
É liberto


É liberdade

sábado, 18 de novembro de 2017

A Bruxa Velha (Tradução de The Ole Higue)

TEMPORADA DE MANGA EM GEORGETOWN, GUIANA

Em uma manhã ensolarada de Sábado, eu não deveria estar correndo atrás de uma bola de críquete no quintal do vizinho. Isso acontece quando se tem um irmãozinho como o Sammy. Ele é mais chato que um mosquito macho.
"Você faz de propósito!" Queria encher ele de porrada. "A vovó diz que a Dona Withers é uma Bruxa Velha. Ela sugou o sangue do marido dela até ele morrer. E vai sugar o seu também!"
"O papai diz que é mentira", disse Sammy. "A Bruxa Velha é história de gente velha. Pra assustar as criancinhas."
"É mesmo? Então continua mexendo com a Dona Withers. Tu vai saber se é verdade ou não".
Caminho até a casa da Bruxa Velha, que fica na esquina. O Sammy fica pra trás.
"Tenho mais o que fazer em vez de procurar essa sua bola de críquete idiota".
"Tipo beijar aquele garoto alto que vive rindo?”
Virei pra ele e encarei. "me vigiando agora, é?"
Passamos pela cerca de um metro e meio, cheia de hibiscos vermelhos. Ninguém usa aquele portão trancado com cadeado que dá para a escadaria da frente, destruída por sol e chuva. Chegamos do lado da casa. Uma corrente grossa protegia o portão de ferro fundido que, corroído, dava passagem para a entrada da garagem. O carro funerário da Bruxa Velha esperava sob a casa. A casa branca acinzentada de madeira ao estilo colonial crescia à nossa frente. Edificava-se sobre oito colunas robustas de 3 metros como uma grande viúva-negra. Cortinas negras sequestravam os raios de sol que tocam os vidros das janelas.
Fui em direção ao portão pequeno que ficava à direita. O Sammy puxou minha saia e ficou grudado em mim. Toquei o sino enferrujado. A cabeça de um homem jovem, o neto da Bruxa Velha, aparece em uma janela acima de nós. Seu cabelo negro oleoso brilhava à luz do sol.
"O quê que vocês quer?"
"A bola de críquete do meu irmão caiu no seu quintal. A gente pode entrar e pegar?"
A cabeça da Bruxa Velha surgiu em outra janela. Seu cabelo preto trançado se arrastava pelo parapeito da janela. Senti um espasmo vindo do Sammy. "Num sou burra, não. Teu irmão magrelo quer é pegar minhas manga mangas." Os olhos negros na carne fraca do rosto pareciam jogar bolas de fogo no Sammy. Ele segurou minha mão e se colou em mim.
"Dona Withers, seu neto pode pegar pra gente, então?"
"Deixa eu te falar, garota. no meu quintal é meu. Manda teu irmão olhudo parar de jogar as coisa coisas pro meu quintal". A Bruxa Velha e seu neto desapareceram para dentro da barriga da viúva-negra.
"Não me olha com essa cara amarrada. Eu prometi que ia tentar, não que ia pegar a tua bola."
Voltamos para casa. Já conseguia prever que o Sammy iria aprontar. Empurrei-o pelas costas devagar. "Sammy, nada de aprontar! me ouvindo? Ou a Bruxa Velha vem sugar o teu sangue". Abri nosso portão. Ele saiu varado pelo quintal como se os dois Dobermans pretos do senhorio estivessem atrás dele. Cacau latiu de dentro da casinha que ficava na escadaria da frente. Era um cachorro grande, esguio, marrom-cacau, de raça mista. Pertencia à família que morava no apartamento de baixo. Desde que atacou o carteiro, Cacau ficava preso durante o dia.
Inspirei profundamente e expirei. Odeio ter que falar com a Dona Withers. Sinto formigas descendo pelas minhas costas. Ela nos amaldiçoou desde o dia em que nos mudamos para a vizinhança. Nosso moderno condomínio rosa e branco de alvenaria deve ser uma afronta para ela. Tudo que cai no seu quintal se perde para sempre. O papai não aproveita seus churrascos das noites de sábado com os amigos. Ela chama a polícia reclamando sobre o barulho.
Sem o Sammy, a Bruxa Velha nem saberia que eu existo. Ele estava sempre perdendo as coisas no quintal dela. A mangueira o atraía para lá. Da janela do nosso andar de cima ele contava as frutas vermelho-alaranjadas balançando nos galhos. Não é fácil para uma garota de dezesseis anos como eu lidar com um garoto de sete anos. Ele revela o que há de pior em mim. A vovó diz que eu tenho rosto de anjo e coração de demônio.
"Ele é um artista danado", a mamãe disse para a senhoria um dia desses. O Sammy tinha conseguido quebrar o vaso de cristal da senhoria. Ela o guardava na mesinha de cabeceira da sala de estar. O Sammy vai frequentemente à casa deles. Joga videogame com filho dela. "A Zina nunca me deu trabalho quando era pequena", a mamãe dizia. "Não tenho mais disposição para acompanhar o menino".
A mamãe  acredita que eu tenho essa disposição para lidar com o Sammy. Além de procurar e pegar ele, faço ele tomar banho, comer sua comida, fazer a tarefa de casa e escovar os dentes. Agora  sou o Optimus Prime. Não via a hora de dar uma hora. Mamãe e papai chegariam do trabalho. Sábado à tarde é minha folga. É meu momento com os amigos. Nenhum Megatron. Nenhuma Bruxa Velha para sugar minhas energias.
******
Era sábado à noite, já passava das oito. Estava na sala de estudos conversando com minhas amigas online. Sammy estava na sala jogando seu Playstation 2. Lutava contra os Decepticons no Planeta Cybertron. Não me perguntem o que ele vê nesses jogos bobos de Transformers. Mas o jogo o mantém quieto por meia hora. Já o filme, é outra coisa. É ação toda hora. E o ator principal é muito fofo.
A mamãe apareceu no vão da porta. Estava usando seu vestido vermelho purpurinado, colado e com alças delicadas. Linda e  curvilínea. Prometeu que me deixaria usar seu vestido no aniversário da minha melhor amiga. Mamãe e papai iriam ao hotel Pegasus Poolside para um aniversário de casamento com alguns amigos. Ar livre, luz de velas, churrasco e música ao vivo. E eu, presa em casa. Servindo de babá para o Sammy.
"Zina, não quero você e Sammy brigando de novo", disse a mamãe. " me ouvindo, Sammy? Nada de brigas!"
"Ela que começa, mãe."
"Sammy!" disse o papai da sala de estar. "É pra escutar sua irmã."
"Tá boooom, pai. Vou me comportar."
Fui com mamãe e papai até a porta da frente. Depois que eles saíram, tranquei a porta. Hora de se manter seguro. Nenhum ladrão iria entrar. Fechei e passei a tranca nas janelas da sala de visitas. Antes de fechar a janela da sala de jantar, dei uma olhada na casa da Bruxa Velha. Consegui ver uma luz em um dos quartos. A mangueira montava guarda à sombra das luzes da rua. Desliguei todas as lâmpadas fluorescentes. Verifiquei todos os trincos da porta dos fundos. As janelinhas da cozinha e do banheiro estavam trancadas. Saí da sala sob a luz do abajur.
O Sammy ainda estava em pé de guerra com Megatron. Tuhtuh-tuhtuh-tuhtuh. O som do canhão que sai do braço do Megatron ecoa por todas os cômodos. O Sammy e eu dividimos o quarto da frente, perto da sala com formato de L. Nossa sala de estudos ocupa o quarto do meio. De lá saímos para a sala de jantar. Mamãe e papai dormem no quarto de trás, perto do banheiro e da cozinha.
Sentei no computador novamente. O Fórum Guianense estava à minha espera. Ontem, o CoraçãoPartido reclamou que não conseguia encontrar uma garota de boa personalidade. O AçúcarMascavo respondeu: "Talvez você esteja procurando nos lugares errados". Registrada como CarinhaDeAnjo, comentei: "Meu problema é parecido. Os garotos da minha turma são muito chatos e infantis".
Mais de meia hora se passou e eu notei os sons repetidos de "Game Over". A sala de estar estava em trevas. O Sammy estava aprontando de novo. Fui de fininho até a porta aberta e saltei pra fora. Não conseguia ver o Sammy. Dei uma olhadela por cima da mureta de metro e meio entre as salas de estar e de jantar. O Sammy estava de pé,  perto da mureta. Escondida, cheguei bem atrás dele.
"O que tu tá fazendo, Sammy?" Ele deu um pulo para trás e quase me bateu.
Ele se virou em um instante para mim. Estava escondendo alguma coisa na mão esquerda. "Num Não tô fazendo nada. só olhando na janela".
"Deixa eu ver tua mão". Ele abriu as mãos, revelando um monte de bolinhas brancas do tamanho de pitombas da Guiana. Tomei da mão dele. "Estão molhadas! O que é isso?"
"É só papel higiênico".
"Tu fica molhando papel higiênico e fazendo bolinha? Sammy? O que tu aprontando?"
"Nada. fazendo nada".
Me inclinei para fora da janela. A luz que vinha do andar de baixo iluminava  o quintal. Não vi nenhuma bola de papel. Deixei a cortina se fechar e me virei para o Sammy. "Não me diz que tu jogou as bolinhas  no quintal da Bruxa Velha!"
"Ela pegou minha bola de críquete".
"Então tu acha certo sujar o quintal dela com papel higiênico?"
"Não". Sammy olhava para o chão.
"A Bruxa Velha deveria sugar todo o teu sangue".
"Num Não tenho medo da Bruxa Velha. Ela nunca vai me pegar."
"É? Quem foi que se se escondeu debaixo da minha saia hoje de manhã?”
"Não conte pra mamãe e pro papai."
"Se tu for pra cama agora, num não vou contar."
Sammy escovou os dentes e vestiu seu pijama. Acomodou-se na cama de baixo do beliche. "Tu promete não contar?"
"Sim, prometo. Agora vai dormir."
O Sammy abraçou seu sapo de pelúcia, colocou o dedão na boca e apagou como uma lâmpada. Queria dormir assim tão rápido. Antes de desligar, meu cérebro processa tudo que aconteceu durante o dia.
******
Sábado de manhã, acordei umas oito. Desci do beliche. O Sammy ainda estava dormindo. Abri a porta do quarto e fui ao banheiro. Quando voltei, arrumei a cama. O Sammy rolou,  revelando uma mancha de sangue no seu travesseiro.
"Sammy". Sacodi até que ele acordasse. "O que aconteceu, Sammy? Tem sangue no teu travesseiro. Tu se cortou?"
"Sangue?" O Sammy se sentou na cama, passando a mão nos olhos. "Onde?" E se virou para mim. "O que tu tá olhando?"
"Tem sangue no teu pijama também!"
O Sammy olhou para a mancha no travesseiro. Sentei na cama dele e examinei sua face, boca e pescoço. Encontrei uma pequena marca vermelha do lado direito do pescoço. Parecia uma picada de mosquito. Desabotoei seu pijama. Nenhuma marca no peito ou costas. Levantei e fui para o quarto da mamãe. Bati na porta.
"Mãe... Pai... alguma coisa aconteceu com o Sammy. Tem sangue no pijama dele e no travesseiro".
A mamãe apareceu. Abotoou  a roupinha de casa. Segui ela até nosso quarto. O Sammy ainda estava sentado na cama com  o dedo na boca. Mamãe olhou o Sammy, o travesseiro e os lençóis. Tocou a pequenina mancha de sangue no seu pescoço. "Zina, tem certeza de que você e o Sammy não brigaram ontem à noite?"
"Não, mãe!". A senhora acha que eu ia mentir sobre uma coisa dessas? Ele ficou acordado até às 9 em ponto e eu coloquei ele pra dormir."
A mamãe voltou para o quarto para acordar o papai.
"Deve ter sido um morcego-vampiro," disse o papai. Passou o dedo pela marca no pescoço do Sammy. "Mosquito não deixa marca de sangue assim".
"Mas as janelas e a porta do quarto estavam fechadas," disse a mamãe.
"Então ele só pode ter se escondido em algum lugar desse quarto," disse o papai.
"Sammy, vai deitar no sofá enquanto procuramos no seu quarto," disse a mamãe.
O Sammy saiu do quarto, acariciando seu sapinho verde. Nem parecia o Sammy, assim fazendo o que mandam sem responder.
"Zina, você fica e ajuda," disse a mamãe.
"Eca", fiz uma careta. "Odeio morcegos".
"Me ajuda a tirar os lençóis," ela disse.
Tiramos os lençóis e as fronhas. Sacudimos tudo. O papai procurou sob os colchões. Tirei nossos sapatos de baixo da cama e bati com eles no chão. Ainda bem! Nenhum morcego-vampiro debaixo da cama.
Papai abriu nosso guarda-roupa. Como sempre, o Sammy deixou a porta semiaberta. Mamãe tirou os cabides com as nossas roupas, uma por uma. Coloquei na minha cama. O papai remexia o guarda-roupa vazio. Afastou-o da parede e inspecionou lá atrás. Nada do morcego-vampiro.
"Zina, pega a escadinha", pediu o papai. Não conseguia ver morcego nenhum do topo da escada.
A gaveta de baixo da nossa cômoda estava aberta. Era a gaveta do Sammy – onde ele esconde as porcarias dele. Enquanto o papai tirava as quatro gavetas, fui para a porta, pronta para sair correndo. Não queria nenhum morcego batendo na minha cara. Encontrei o Sammy perto da porta. A mamãe procurava nas roupas em cada gaveta. Papai procurava na cômoda sem gavetas. Nenhum morcego nojento. Puxou a gaveta da parede, mas não tinha nada preso lá atrás.
Nosso quarto estava uma bagunça. A mamãe sentou na cama do Sammy. O papai ficou no meio do quarto. Sammy e eu ficamos no vão da porta.
"Não tô entendendo", mamãe disse para o papai. "Se não é um morcego-vampiro, por que esse sangue?"
Segurei a mão do Sammy e o puxei para a cozinha. "Sammy, se tu não se cortou, se um morcego-vampiro não te mordeu, então só pode ser..."
"A Bruxa Velha", disse o Sammy com um sussurro. "Não fala pra mamãe e pro papai sobre as bolinhas de papel. Tu prometeu. Vou ficar sem videogame de novo".
"O que a gente vai fazer agora?", perguntei.
"Vamo ligar pra vovó e perguntar."   
"Não, ela vai querer saber o que aconteceu. Vamo pesquisar na internet".
"O que vocês tão sussurrando aí?" Sammy deu um pulo quando ouviu a voz da mamãe.
"Só dizendo pro Sammy que ele tem que me ajudar a arrumar o quarto."
"Boa ideia", disse a mamãe. "Zina, quando trocar essa sua roupa de dormir, vem me ajudar a fazer o café".
"Vem, Sammy", disse o papai. "Vamo ver se não tem outra mordida por aí".
Depois do café, mamãe lavou a louça. O Sammy me ajudou a arrumar o quarto. Depois, no quarto de estudo, ele sentou à minha esquerda na frente do computador. Digitei no Google: "Bruxa Velha".
O Sammy não se aquietava na cadeira. "Achou alguma coisa?"
"O Dicionário de Inglês da Jamaica diz que a Bruxa Velha é uma bruxa que pode sair da sua pele e voar à noite para sugar o sangue das pessoas, principalmente bebês."
"O que eles dizem pra gente fazer pra impedir a Bruxa Velha de sugar meu sangue?"
"Só fala aqui de uma cruz azul pra usar no nono dia depois que um bebê nasce. Não vai funcionar pra ti".
"O que mais diz aí?"
"Deixa eu ver". Cliquei no link do Dicionário de Inglês Caribenho em Uso.
"O que diz?", o Sammy se esticou para a frente, apertando os olhos pertinho da tela "A letra é muito fina pra ler".
"No interior, algumas superstições fetiches ainda são mantidas para afastar a Bruxa Velha".
"O que é 'superstições fetiches'?"
"Deve ser as coisas que protege da Bruxa Velha..." Continuei em voz alta: "Podem-se colocar protetores em volta do pescoço da criança, uma flor um cubo de azul pendurada acima da porta ou marcas de giz feitas nas escadas."
"Posso pegar giz lá embaixo, no Charlie," disse o Sammy.
"Olha, Sammy, eles mencionam a Guiana. 'Existe uma lenda popular na Guiana sobre um espírito maligno que sai de sua pele e transforma-se em uma bola de fogo, ou algo parecido, e então suga o sangue dos vivos’".
"Como que ela vira uma bola de fogo?!", o Sammy perguntou.
"Como é que eu vou saber? Te aquieta, deixa eu ler... No dia 28 de Abril de 2007, um grupo de moradores do campo em Bare Root, Costa Leste do Demerara, espancou uma mulher até a morte. Achavam que era  uma Bruxa Velha. Jogaram arroz em volta dela".
"A mamãe tá cheia de arroz. Ela não vai nem perceber," disse o Sammy. "Aí diz onde tem que botar o arroz?"
"Sim, tem que colocar um bocado de arroz cru perto do pé da cama. Aí a Bruxa Velha vai contar os grãos de arroz. Quando ela tiver contando o arroz, a gente sai da cama de mansinho e chama o papai."
"Aí o papai bate nela com a vassoura de palha", disse o Sammy.
******
Manhã de domingo. Papai e mamãe assistiam TV. Sammy e eu estávamos na varanda  lá de trás. Fizemos uma linha com giz no chão da porta dos fundos. Fizemos outra linha no chão da porta da frente. Para proteção extra, desenhamos uma cruz bem grande em cada porta.
Na hora de dormir, depois que o papai desligou todas as luzes, Sammy e eu voltamos ao trabalho. Com a luz da lanterna do Sammy, colocamos montinhos de arroz em cada pé da cama. Subi na cama de cima.
"Tu pode dormir na minha cama hoje?", disse o Sammy.
Que bom que ele pediu. Não queria dormir sozinha. Peguei meu travesseiro e deitei com ele na cama de baixo. Sammy me cobriu com seu lençol. Escondi a lanterna debaixo do meu travesseiro. O Sammy se aconchegou sob meu braço esquerdo como fazia quando era bebê. Apertei ele no meu peito. Nenhuma Bruxa Velha iria sugar o sangue do meu irmão.
"O que a gente vai fazer se as linhas de giz e o arroz não funcionarem?", perguntou o Sammy.
"Vou ficar acordada e começar a gritar quando eu ver ela."
Meu irmão tentava ficar acordado comigo. Mas em meia hora ele caiu no sono. Eu continuava de guarda naquele quarto sombrio. Meu corpo contraía até com o menor ruído. Homens andavam pela rua. O Cacau latia lá do portão da frente. Eles o xingaram. Os Dobermans do senhorio latiam e rosnavam. Um gato silvava. O Cacau correu para as escadas da frente. Toda noite ele deitava na frente da porta. A mamãe sempre reclamava do fedor de cachorro no pátio. Ela já pediu milhões de vezes para o papai colocar um portão no topo da escada para o cachorro não entrar. Acho que lá dava para o Cacau ver direitinho o nosso quintal. De acordo com o Sammy: "Ele sente o cheiro melhor lá no alto." Não me ligo nessas coisas. Mas era bom saber que o Cacau estava de guarda. Ele latiria quando a Bruxa Velha aparecesse. Iria arrancar um pedaço dela como ele fez com o carteiro.
O Cacau latia. Meu cérebro acordou. Já era mais de meia noite. Devia ter cochilado. Uma manga caiu da árvore da Bruxa Velha. Abracei meu irmão. O Cacau rosnou. Meus músculos se contraíram. Apertei o Sammy mais forte. Tirei a lanterna debaixo do travesseiro. Apertei o botão de ligar e apontei a luz por todo o quarto. O Cacau deu um gemido. Silêncio. Esperei. Meu corpo estava muito rígido, não conseguia me mover. Tudo estava quieto. O Cacau parecia ter dormido. Eu deveria dormir também. Escutei o ritmo lento da respiração do Sammy. Senti um aperto de leve contra o meu peito. É a última coisa de que lembro. O sono me venceu; me levou para a barriga da viúva-negra.
Manhã de segunda. Fim de semana acabou. Agora era voltar para a escola. A Bruxa Velha não estava no nosso quarto contando os grãos de arroz. Não tinha sangue no pescoço do Sammy, no pijama ou no travesseiro. A Bruxa Velha não poderia se aproximar de nós. Estávamos a salvo.
"As marcas de giz funcionam", exclamou o Sammy. "É verdade o que eles dizem: a Bruxa Velha não pode passar pela marca de giz."
Sammy e eu nos aprontamos para a escola e tomamos café. Ajudei o Sammy a arrumar a mochila. A mamãe sentou na frente do espelho para se maquiar.
"Se vocês quiserem carona pra escola, é melhor se arrumar logo," disse o papai. "Vou lá em baixo dar uma esquentada no velho Ford." Papai abriu a porta da frente. "Zina! Sammy! Vem aqui, rápido!".
Congelei. Sammy e eu encaramos um ao outro. Sammy correu para a porta da frente. Segui.
O papai ficou na porta. "Quem ia fazer um negócio desses?"
Alguém tinha movido o tapete de boas-vindas para o centro da varanda. O Cacau estava em cima do tapete. Sua cabeça, sobre uma poça de sangue. Bolinhas de papel higiênico adornavam sua silhueta morta como um cadáver preparado para a fogueira.
Estendi minha mão e apertei, bem forte, a do Sammy.



Tradução de The Ole Higue, de Rosaliene Bacchus, disponível em: http://www.guyanajournal.com/Ole_Higue.html

Confira outros contos e muita coisa interessante no blog da autora: http://www.rosalienebacchus.com/writer/ShortStories.html
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domingo, 5 de novembro de 2017

Guardado

Passou o tempo do desespero esperançoso
Das noites que vivi inteiras no meu quarto
Assistindo a responsabilidade dos teus sapatos
Na minha tevê grande e cheia de cores.
Como o souvenir de um vôo de amores,
Guardo aquilo que não digo
Com todas suas estampas-memórias
- Poemas, mercado, colchão: histórias -
No fundo do guarda-roupa cotidiano
Mas que você fique sabendo, que
Mesmo sem vestir camisa, eu amo

Hoje à noite

Hoje à noite eu morreria feliz
Morreria porque tua pupila
expandia enquanto me olhavas
E só por achar que tu me vias
Eu sorriria 
no último chão

Mas não posso morrer hoje à noite, não
Ninguém cuidaria melhor
das borboletas no meu estômago
E dos bichos da minha razão
que ainda nem destroem as plantas do nosso lar

Nego os perigosos veículos alheios 
de atravessar minha frente
- só te vejo -
Impeço os raios
que se atraiam por minha cabeça
- mas tu podes -
Rejeito que os choques
corram por meu corpo
- é ofício das tuas mãos -
Proíbo as balas perdidas
de se abrigarem no meu peito
- não cabe mais que você

E negando 
não morrerei
hoje à noite
Porque os melhores beijos
podem vir pela manhã

domingo, 11 de junho de 2017

Maratona

(Mundo fundo mundo eu me afundo em mim mudo
Imundo inundam-me segundos vagabundos)

Passo  na  pele  a criatividade do mundo
A  que  me  era   natural  acabou  ontem
O  perfume  encantado  atraía  de  longe
Hoje  nem  o  olfato  dos  insetos  notou
E como dela pudesse comprar um fardo
Trabalho
E como se a  falta  cheirasse a desespero
Dinheiro
E como a sentisse deslizando na mão
Ficção

Corro  nesta  competição  para  a  frente  que  me  é trás coletando de
algum sujo chão algumas folhas de algum valor notas que pagam-me
o suor mas pouco compram-me o cheiro bom e pela primeira posição
persisto com falta de ar e câimbra e ferida e calo e dores de exaustão

Enfim...
A...
Chegada.

Amanhã...
Mais...
Depressa.

Gritam sonoros "força foco e fé"
Sobre um cético fraco desfocado
Que segue arruinando a planta dos pés
Que o deveriam suportar (aplausos)
Que mais os outros contam senão teu êxito? Eles
Que não sabem que é o banho que te move a vida
Que não viram o prazer
Que tens ao esfregar-te como em uma briga a criatividade
Que compraste pra ti, mas que não é tua e, meu Deus, o
Que foi aquela queda sofrida?!

Mas agora cheiro bem, respondo
Indo de novo para a corrida

(Mundo fundo mundo eu me afundo em mim mudo
Imundo me inundam segundos vagabundos e infecundos)

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Gotinhas

Imagina o desespero das gotinhas
Que sem ter decidido voam
Todas na mesma direção
Vítimas do mesmo vento soprado.


E o daquelas que se plaftam?!
E o das outras que se pluftam?!


Ninguém está nem aí pra elas
Quando escoam sua dor abaixo
Juntando suas quedas
Espatifadas do outro lado do vidro
Mas olham por meio delas
E nem as agradecem pela sua translucidez.


Imagina o desespero das gotinhas.
Agora imagina o meu.

Minha criança teimosa

Teima a criança em mim
E quer sair desprotegida
Pelas portas que o querer escancara:
As palavras e a afonia.
Minha carne é inflamável
E à minha criança fascina o fogo.
Não se sabe vulnerável
A ingênua de agir porfioso.

Quero a tua calmaria.
Quero a tua calmaria.
Quero a tua calmaria!

Ainda o apocalipse desconheces
Desinteressa-te a desgraça deste lado
Meu tragicômico tua curiosidade não vê
E todo dissabor é ignorado

Para de choro.
Para de choro.
Para de choro!

Oh, perdoe esta minha fraqueza
Ela foi mimada pela mãe (natureza)
Não consigo dar custódia
À minha criança teimosa

Engole o choro

Engole o choro, menino
Que nem tua é a noite.
A força do teu jeito é magra
A lágrima do teu sono é podre
Ainda nem são 5 e dormes
Em pé te vêm as perdas
Tosses o teu desgosto
Rosto teu pronto é rosto?


Saiba que a felicidade doutro sonho
Prensa a tua contra a tristeza
E avistam-se fatiados sobre a mesa
Os teus planos mais pueris
No jantar amigo se comem amores
E saem dores pelo nariz
Em irados suspiros nasais que curam
Até as clausuras que não se cospem
E delírios que não escorrem
Nem por todo o suor que distrai
Pois, pelo mais que já te dizem e mostram
Por que não te mandas agora ser feliz?

Gargantas do leque de sol e lua

Hoje a cidade ressecou.
Grande! Eu também.
Ontem a câmara caiu do penhasco
E as folhas mortas que arrastam o mundo se aglomerando...
Eu não né, meu cachorro também não e minha prima distante
É o filho do borracheiro que roubou um real!
Não prestas atenção! Falo de coisa maior:
Faz frio para a nossa determinação.
Só não esquenta porque não esquento a cara deles.
O clima está chuvoso, mas no Globo hum é primavera.
Flor é coisa de vagabundo meu amigo
Arma sim é bom e seguro
Faca na caveira e bala no mundo
Quero ver quantos bandidos sobram.

Cartas Marcadas se renovam.
Claro que não. Não vai sobrar um!
Ainda há escadas misteriosas naquele muro.
Foi culpa da segurança, não me venha com essa.
O caos aqui é adulto; aumenta seu próprio valor.
Mas o Senador, o beco, a culpa é deles!

Me diz se não é
Diz

E também da esquerda
Diz

É essa corja toda
Diz


Diz que não sou eu.


Terminado em 12/07/2016

Saudade III

Respirei intensidade
Visitei experiências
Conversei com lugares
Me apaixonei por crenças


Vivi pessoas

Tramitei melodias
Atravessei canções
Negociei comidas
Animei tradições
Pulei de outra vida
Empurrei ficções
Saí da Ilíada
Resgatei dragões


Escrevi pedrinhas
Regulei hormônios
Excluí mandingas
Limpei sonhos


Menti pra pontes
Fechei retratos
Engoli montes
Acreditei em chatos
Superei fontes
Agradei olfatos


Amei ódios
Trabalhei panelas
Criei pódios
Tranquei donzelas

Saudade II

Respondi à minha casa
Que não queria ficar
Trouxe-me, então, inteiro
Para aos cantos me doar


Fecho a porta do céu
Todos as noites e em prece
Digo tchau, até mais cedo
E Coimbra não permanece
Nunca como a deixei
Quando dormi.


Tanto experimentei
Que experimento agora sou
O vento, o meu cheiro sente
A terra cultiva meu sabor
A água em meu suor se benze
O fogo se queima em meu calor


O sólido que eu era
Diluiu-se na sua liquidez
Que parte de mim é mundo,
Que parte do mundo me é ex?


E o espírito vaga, sai vago
E volta cheio de coisas pra escrever
Canta-me ao som de um fado
As belezas que há no adeus
As certezas que estão de lado
As purezas que não vi nos meus
As proezas de ser vivo e parvo
As riquezas que o olho esqueceu.


 Ah, algumas coisas sei sim
Sou muito mais os outros
E muito menos mim
Desde que me comecei em ti
Que primeiro teu sol eu vi
(Sol de todos os dias leves
Que nasce por cima do enfim)
Pendurar-se às tuas casas
Se forçando a aguentar o doer
- Dor que sinto mais forte porque
A partir de amanhã pode ser
Que eu nunca mais te veja -
Que inveja do sol:
Volta toda quinta e terça. 

Toda

O fogo que guardas no peito
Lareira me é sem ser incêndio
Meu corpo, aconchega-o inteiro
Me esquenta assim sem me queimar
Em meu quintal faz a fogueira
Da qual ao redor canto e danço
Acende os foguetes que lanço
Se penso que te vi chegar
Clareia dali a varanda
Em que te pretendo sentada
Contando historietas passadas
Futuros a romantizar.

O gelo que guardas no peito
Congela-me? Não, é refresco
O pego na mão, massageio
Os baques que a vida me dá
Esfria bem minhas bebidas
Reflete-me os melhores traços
- Revisto-me em muito agasalho
Se muito gelado ficar
Suporto até menos cinquenta
Pra seres tu meu sonho bom

Visto vinte e dois moletons
Sim, visto, é só precisar.

Saudade I

Antes que o mês acene, quero
Que tu, tempo, no teu trono, escutes
Que te atentes ao meu pedido
E único penar:
Saudade se não me mata
Certamente me matará

Sabes - creio - do que falo
Pois não é tudo feito de ti?
Não tem tudo as tuas partes?
Criaste, então, a saudade!
E, ora, por que fizeste
Tão fugaz o bem-sentir?

Esta é a minha oração, tempo
Mas sofro que desaprendi a orar
Perdoa este cataclismo
Faz desta distância-abismo
Um minutinho só de longe
Que meu povo quer se achegar.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

És corpo


És corpo
E é por ser corpo
Que dói
É por ser torto como todo corpo
Que se mói a perfeição
É por ter rastros de amassos
(Passos gastos com solidão)
Que escutas vozes do desgaste
Em toda somatização


És corpo, querida
E por ser corpo, no entanto
Em meio ao soluço do pranto
Aqueces a ti mesma em noite fria
És corpo, meu bem
E é por ser corpo, contudo
Que de tão rápido, absurdo
Curar-te-ias do mal que se prende.

Cabeça

Na cabeça era tanta coisa
Que pessoas ali não cabiam
Muitos 'tiveram à porta
Mas nunca a visitariam

"Esta é a minha bagunça
Converso com ela e me entendo
Não quereria que minhas joças
Te expelissem daqui tremendo
Como boa dona bem cuido
(Foram anos de acúmulo e panos)
De todas as minhas posses
Raras têm marcas dos danos
Imagina se alguém levasse
Depois de todos esses anos
Uma de minhas dessortes
Pra mim seria a morte
Desonra, vergonha, calote!
Mesmo que por engano"

- Sim, entre por favor
Só não repare a bagunça
Sabes que vivo sozinha
E que meu tempo se encurta
Fique mais que à vontade
Aceitas um vinho, um chá?
Conheça a cabeça uma hora
Enquanto eu não voltar
"Vá logo simbora, ome
Que tenho que cuidar
Deixe eu fazer minha boia
(hmm, arroz ovo e jabá)"

Voltei, se divertiu?
Mas nem se saiu do sofá!
Podia ter ido a Troia
Que não irias mudar
"Melhor que assim seja
Tudo no seu lugar"
Toma teu vinho agora
Fala, "faz, põe pra fora
Anda, amor, sem demora
É hora de te expulsar".

Formasidade do sentismo


Inescoadas saudades
Podem acompletecer a dor
A irrepetância das situações
Leva à sobreanimatura.

Desdesejos impermitidos
Empequenecem o coração decheio.

Efemerições confundem-se
Com permanecivas amoroses.

E meu sentismo assim se compõe:

Adoródio, paixodesprezo, inerciação.

terça-feira, 9 de maio de 2017

(In)felizmente humano

Tento conviver com minha mera humanidade
E por enquanto vivo as vidas do que virá
O limite da carne jamais me bastará
Pois sei que no corpo há tendências de sufoco

A forte mão do carrasco do meu braço é parte
Os chicotes do flagelo são minhas entranhas
O físico em invisíveis jaulas me tranca:
Só permite a mim olhar limitado e louco

Reprimo vontades de sobre-humanidade
Por enquanto o que virá me consome a vida
O espírito o tempo terreno desconvida -
A alma, semilivre em conflito barroco

O carrasco é até gentil quando tem arte
Os sonoros estalos acordam-me os sonhos
O tempo em clausura? Certamente reponho!
De dentro das grades o mundo é menos oco

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Para Caroline

Não te ofereço revolução
Há pouca ousadia
Não sou rebeldia
Sou observação

Ofereço, ma chérie
Sexo no chão
Enquanto o levante transborda ali
À volta do saguão
Enquanto eles gritam Fora Temer
Aqui grita o tesão
Enquanto tu sob o meu toque gemes:
Manifestação!
Bandeiras vermelhas no alto tremem
As pernas também vão

Ó, deixa que passem, morena
Vem, te coliga em mim
E sindicaliza teu corpo e o meu
Até da noite o fim

sábado, 8 de abril de 2017

Não-sentir de estimação

Apatia é o bicho do quero sem querer
Sobe no pé da gente e espera-nos perceber
Para darmos patada no próprio pé descalço
E continuamos puxando a coleira de náilon

Gosta de fazer serão nos dias acordados
Se apega aos olhos ouvidos tato boca e carne
Amorna o sol do meio-dia o gelo e os nossos lábios
E saem menos primas as matérias das verdades

Falso, falsos, continuamos sendo falsos
Trocando as meias-mentiras por centavos
Caprichando na limpeza do sapato
Negligenciando o salão que há no peito
Pobres manos imperfeitos
Por que dizeis que vossa felicidade é vossa?
E por que sai da vossa boca que tudo é são?
Sinto que vossa pena não se desgasta
Que a vossa força arregaça as mangas do patrão
Que o céu risonho e límpido vos impede de ver no vácuo a escuridão

Grandes seriam vossas manias se vossas maneiras não fossem praga
Coisa podre e fedida é se alimentar de chaga
E vós não quereis saber
Não quereis nem ouvir
Sabeis de vós e vossa fuça
E viveis da fuça lavada
Que quando não obedece vos enfada e envergonha
Pamonhas!
Crescei, moleques, crescei!
Vossa mãe não vos prevenirá pra sempre
O sucesso não surgirá de um ventre
E a neve que pensais que fazeis cair é caspa
Morre, desgraça! Que morra mesmo, a desgraça
Vos aliviaria o peito saber que o mal não vem?
Nem
Nem Assim.

Grita vosso pudor que quer ser desempregado
Chora vossa moral que não aguenta mais ser usada
Apiedai-vos do vosso corpo que cansou de não ser pago
Cancelai a confecção dessas vidas sem frangalhos

Cantai, cantai, cantai e tocai
Saí da toca e se encantai
Buscai a ergonomia das trocas de cuidado e energia
Tocai no que tocardes e fazei vibrar
A mais bela das euforias,
A verdade da vossa alma
A exatidão da vossa vida.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Bonzinho


Cansa ser bom tempo-todo
E como cansa mostrá-lo!
"Peço sexo ou me fodo"
Disse o bonzinho exaltado
E levantou a multidão
É maus que eles querem ser
O mocinho só se fode
E esquece de foder
Foder por melodia,
Por lascívia e por odor
E esquecer das feridas
Que abre e deixa o amor
Ah, se foder fosse fácil
Como é fácil o bem-querer
Seríamos menos profundos
E mais do vem-cá-foder
Grunhiríamos c'o gozo
E se amansaria o ter.